segunda-feira, 28 de março de 2011

Mais Uma Leitura Crítica Sobre Vinicius de Moraes



O nome de Vinicius de Moraes remete primeiro à música, à autointitulada MPB, por ter sido ele o mais proficiente parceiro do herdeiro da dinastia Bossa Nova, Tom Jobim, que a herdou de João Gilberto (o primeiro da dinastia). Porém, talvez por motivos, que não cabem aqui serem discutidos (como o hábito da não leitura, o desinteresse pela cultura, o consumismo, o consumo da fácil “indústria cultural” televisiva, etc), o Poetinha fica, como vários outros, com sua produção canônica esquecida, até perdida, na poeira levantada pelo turbilhão do dia-a-dia, do corre-corre e, como dito já, pelo crônico sedentarismo das facilidades dos tempos televisivos, de altas definições e de tecnologias avançadas.
Uma das primeiras incursões de Vinicius na música se deu em 1956, quando da participação no musical Orfeu da Conceição, livre adaptação do mito grego de Orfeu, cujo enredo foi levado às favelas cariocas e, por isso, acabou sendo uma tentativa de popularização da dita ‘alta cultura’, bem ao gosto modernista. Outra e martelada à exaustão investida, ainda inicial de nosso poeta na música, foi a Garota de Ipanema em 1962. E fala-se disso e sempre, e somente disso, como se a vida e a carreira de Vinicius de Moraes, poeta, começasse aí.
Pois já em 1935 ganha, em disputa com Jorge Amado, o prêmio Felipe d’Olliveira, pelo livro Forma e Exegese, fato que o insere (tardiamente, como prefere Luciana Stegagno-Picchio) na Geração de 30 do Modernismo nacional, ao lado de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Murilo Mendes, dentre outros. Fato que, analisando o título da obra em questão, nos remete a um Vinicius, em seus primórdios literários, um tanto ausente e ou distante dos princípios levantados e defendidos pelo Modernismo, não só o de 22 como também o de 30 (óbvia ampliação da fase anterior), já que, a “forma”, como se sabe, foi exatamente o ponto crucial da querela modernista com relação ao passado literário brasileiro.
Ainda, uma querela comum aos estudos da literatura é se porventura a participação dos poetas na feitura de músicas populares, escrevendo-lhes as letras, pode ser considerada uma atitude literária ou poética. É exatamente Vinicius de Moraes quem figura o topo da lista, objeto de tal discussão, já que outros que estariam também aí arrolados, como Chico Buarque (para citar apenas um só nome) começaram pela música e enveredaram para a Literatura, ao contrário de Vinicius, que começa poeta. Affonso Romano de Sant’Anna escreve que “com a passagem de Vinicius de Moraes para a série musical e o surgimento da Bossa Nova é que se observaria uma ligação mais sistemática entre a música popular e a ‘poesia literária’ no Brasil”. Porém, a crítica mais, por assim dizer, mal-humorada, fecha questão. A poesia é estanque. Não precisa de outro suporte, qual seja a música, senão o livro e o lirismo, para existir. Tal ponto de vista pode ser entendido de maneira bem contemporânea, já que, vislumbrando o panorama literário ocidental, e observando os trovadores, vê-se que a poesia sim, em seus primórdios, não dispensou o suporte musical para sua existência. Nada demais hoje quando alguns poetas sejam também compositores, assim como intelectuais do porte de um Mario de Andrade sejam inclusive poetas depois de músicos.
Aqui, entretanto, para não fugir demais ao assunto proposto, poder-se-ia, então, dividir a obra de Vinícius de Moraes, poeta, entre antes e depois de 1942, uma data ainda longe dos acontecimentos musicais bossanovistas do porvir. O futuro parceiro de Tom havia ganhado uma bolsa para estudar Literatura em Oxford, quando, estando a Europa abalada pela 2ª Guerra, seus estudos foram interrompidos e, portanto, se viu de volta ao Brasil naquele ano.
Em 1942, de volta da Europa, aos 29 anos, fez uma longa viagem ao norte e ao nordeste do país com seu amigo e escritor marxista norte-americano Waldo Frank. Tal viagem lhe deixa marcas profundas. Até então era poeta ligado visceralmente à tradição literária e católica, direitista e politizada, a ponto de comemorar qualquer avanço fascista: “torcíamos pela vitória do fascismo e líamos Nietzsche como quem vai morrer” (Poesia Completa e Prosa, p.634). Porém, o contato direto com a realidade de miséria e pobreza, de carência e esquecimento sofrida pelo povo, mediante os resultados desta viagem, ‘revoluciona’ a forma de pensar e agir do poeta, de tal forma que antes de 42, pode-se sinalizar um poeta afeito à sua formação religiosa e direitista citada acima. Mas não somente isso, também a presença de conotações místicas e o desejo de transcendência, a busca pelo mistério e a constante presença do contraste entre a alma e o corpo, numa abordagem com a marca da culpa, do pecado e da busca pela salvação, sempre pela ótica espiritual, solene e rebuscada, contrária mesmo ao contexto sócio-político-cultural em que vivia ali.
Depois de 42, depois de tal viagem, segundo Sergius Gonzaga, além da perda do tom solene, com a utilização da linguagem popular, Vinicius passa a cantar o amor concreto, livre das idéias de culpa e de pecado, a exaltação física da mulher, a valorização do cotidiano e a abertura para o social, colocando-se visivelmente na posição de esquerdista, não só político como também de intelectual de esquerda.
Portanto, para cantar o amor concreto e a exaltação física da mulher, Vinicius o faz de maneira a rejeitar a concepção de que corpo e alma são separados e funde tais elementos num único campo para que possa se posicionar, agora livre, sensual e naturalmente, contra o mito religioso da eternidade de tudo, posto que apregoa que seja infinito enquanto dure. Da mesma forma que abandonar a visão religiosa de mundo lhe permite fazer a abordagem livre da mulher e dos desejos que ela lhe desperta, também lhe propiciou a visão do mundo material, o que se pode apontar como consequência da viagem de 42, já que passa, por isso, a se comprometer com o cotidiano, o que se vê em (também martelada à exaustão, mas bela) A Rosa de Hiroxima, Pátria Minha e Balada do Mangue. Sobre este último, Antonio Candido afirma: “o autor de um poema como este só pode ser um grande poeta”.
Mas é em O Operário em Construção em que se veja talvez o maior exemplo de sua preocupação para com a abertura social, pelo ponto de vista esquerdista, porque, embora tendo sido o poeta proveniente e tendo convivido com a alta sociedade, dados o seu posto no Itamaraty e sua influência social e até política, o operário, personagem do poema, que sempre dizia sim e agora diz não, representa, de acordo com Flávio R. Kothe, a ruptura da submissão secular ao ditado da oligarquia, pois o fruto do trabalho do operário deve ficar com aquele que o produz e não com a minoria que vive de sua exploração.
E ainda, sobre a posição de intelectual esquerdista, não é somente acerca de seu pensamento político que se lhe atribui este título, já que se percebem nuances de originalidade em sua produção poética, embora seja ela muito irregular. Flávio Kothe, crítico ácido e implacável, para provar tais nuances, enumera dois poemas, quais sejam: Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes e Minha Mãe, poemas em homenagem aos pais do poeta.
No primeiro, diz corrigir uma lacuna da filosofia tradicional pouco preocupada com a felicidade, com a infância ou com a alegria possível. O recorte do cotidiano neste poema, de acordo com o crítico, registra ao mesmo tempo uma pequena realidade possível – o que ocorreria de forma diferente em outros poetas e em outros tempos por exemplo, estando neles ausente – e registra uma busca transcendental ao círculo familiar, que se abre com o binóculo, para o mundo e para o sonho, através do azul infinito do mar. E, ainda de acordo com Kothe, mostra um filho, no caso Vinicius, a cumprir o mandato poético não realizado pelo pai. Aí pode-se entrever que a continuação da vida também se dá pela poesia produzida pelo filho em função da impossibilidade de o pai escrever, porque “o lirismo aflora de um fundo trágico”, segundo Kothe, e “o homem tenta domar essa experiência para transformá-la em palavra e poder domá-la”.
Já no segundo texto, Minha Mãe, Kothe aponta que o que amedronta o poeta não é dito no poema e que não importa o que desencadeie esta sensação, o que vai importar, para o crítico, é que a mãe que aparece no texto é a mãe que é memória, que é aconchego e repouso; é reconforto diante da fragilidade humana, e isto o filia à tradição de um Hölderlin por exemplo. Assim, o crítico destaca o fato de que “afinal, não podemos nos furtar às questões mais graves da existência, e uma delas, das mais primárias, é como os pais que geram um filho o condenam, no próprio gesto de gerá-lo, ao destino de todo ser vivo: à morte”. O destino de cada mãe é o destino da terra e o gesto de cada filho que retorna ao seio materno é o gesto de quem aceita seu destino e a vida que lhe foi dada, completa Kothe.
A cantora Maria Bethânia, comemorando seus 40 anos de carreira, em recente espetáculo dedicado à memória do amigo e mestre Vinicius de Moraes, canta o Samba da Bênção, composição do Poetinha com Baden Powell. Nele, a cantora pede a bênção não só a Vinicius, como também à turma dela: a Caetano, a Chico, à Nara, etc, e Vinicius pede a bênção à turma dele – cada um na sua! É interessante ver os notáveis, os maiores, se auto-elogiando, se auto-afirmando e se auto-promovendo num exercício constante de rememoração ou de valorização da cultura produzida. O sedentarismo televisivo crônico, aludido acima, parece exigir que tais aplausos sejam promovidos frequentemente para que, também frequentemente, nos lembremos de que pensar e promover a Literatura e a tradição literária de um povo e ou a grandeza deste ou daquele poeta é muito mais do que lembrar sua bebida preferida ou o número de casamentos por ele contratados.

 Este texto foi originalmente publicado na edição número 2 da extinta Revista Leitura&Crítica.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

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