domingo, 10 de abril de 2011

O Anjo Caído de Almeida Garrett



O Anjo Caído


Era um anjo de Deus
Que se perdera dos Céus
E terra a terra voava.
A seta que lhe acertava
Partira de arco traidor,
Porque as penas que levava
Não eram penas de amor.

O anjo caiu ferido,
E se viu aos pés rendido
Do tirano caçador.
De asa morta e sem 'splendor
O triste, peregrinando
Por estes vales de dor,
Andou gemendo e chorando.

Vi-o eu, o anjo dos Céus,
O abandonado de Deus,
Vi-o, nessa tropelia
Que o mundo chama alegria,
Vi-o a taça do prazer
Pôr ao lábio que tremia...
E só lágrimas beber.

Ninguém mais na Terra o via,
Era eu só que o conhecia...
Eu que já não posso amar!
Quem no havia de salvar?
Eu, que numa sepultura

Me fora vivo enterrar?
Loucura! ai, cega loucura!

Mas entre os anjos dos Céus
Faltava um anjo ao seu Deus;
E remi-lo e resgatá-lo
Daquela infâmia salvá-lo
Só força de amor podia.
Quem desse amor há-de amá-lo,
Se ninguém o conhecia?

Eu só. - E eu morto, eu descrido,
Eu tive o arrojo atrevido
De amar um anjo sem luz.
Cravei-a eu nessa cruz
Minha alma que renascia,
Que toda em sua alma pus.
E o meu ser se dividia,

Porque ela outra alma não tinha,
Outra alma senão a minha...
Tarde, ai!, tarde o conheci,
Porque eu o meu ser perdi,
E ele à vida não volveu...
Mas da morte que eu morri
Também o infeliz morreu.

A trama do poema Anjo Caído é regida por duas forças superiores e antagônicas, uma celeste e a outra terrena, às quais correspondem dois seres tais quais celestial e terrenal: o anjo caído e o eu lírico. Aquela força abandona, enquanto esta se impõe; abandona o que a representa e, então, ele, o anjo, é submetido aos pés da figura terrenal opressora.

O antagonismo presente no poema talvez justifique o fato de que a seta acerta o anjo, não o anjo acerta alguém, como de costume, de tal sorte que, ao cair, não tenha se ferido pela queda porque anjos caem, mas por aquilo que se o impôs forçosamente. O anjo decaído, por isso sem luz; sem asa, por isso sem liberdade, pode ser uma alegoria romântica da perda, pelas quais sofrem os românticos. Ainda pode ser mais especificamente a representação da perda da ingenuidade e do não-ideal, pois o anjo está sem asa e com os pés no chão: não pode voar nem sonhar, assim há de encarar o real. 

Assim, nem o anjo, nem o eu lírico têm um norte para servi-lhes de bússola, estão perdidos diante do real, como um ser romântico típico, que se insurge contra tal realidade, fugindo dela e escapando até a morte. O eu lírico já não pode amar, foi enterrado vivo. O anjo já não pode voar, é caído vivo. Assim, pode-se estabelecer uma relação de duplicidade, típica romântica entre os dois seres que representam as forças antagônicas,
as forças antagônicas, por exemplo:

EU LÍRICO                                   ANJO
                         |                                                |                     
                                   - já não ama                               - já não voa
                                   - enterrado vivo                          - caído vivo
  |___   não-liberdade    ___|
 impossibilidade
|
duplo



Por essa perspectiva, pode-se entender que de forma dupla, o eu lírico se projeta no anjo, pois sendo este de caráter divinal, quimérico, nada melhor em que um romântico se espelhar, já que o Romantismo é responsável pela introdução das mudanças na sensibilidade do ser humano e na visão de mundo no Ocidente, e a mudança, neste caso, fica por conta da inversão ocorrida no entendimento do ser romântico de sua condição existencial. Primeiro, ao contrário dos árcades, se classificavam superiores às palavras, aos cidadãos comuns, achavam que seus sentimentos eram válidos mais do que os dos outros, por um entendimento egoísta de que seu sofrimento era o único, o maior e o pior de todos. E, a partir disso, segundo, o romântico tem a superioridade intelectual, existencial e mesmo social em si, de tal forma que a superioridade do vate romântico pode ser entendida mesmo como algo quase divinal, que ninguém compreende.

Assim, quando Garrett sinaliza: Se ninguém o conhecia? o pronome o é anafórico, então, do amor, que seria capaz de salvar o anjo, ou do eu-romântico que fala nesse poema projetado no anjo? Em ambos os casos, o resultado é perfeito: se se refere ao amor que se desconhece, o amor ainda é resultado da superioridade romântica – pois só ele, romântico sabe como e o que é. Se se refere ao anjo, ou ao próprio eu lírico projetado nele, a ascensão é ainda maior, pois o romântico é agora quimérico – e desconhecido. Ou melhor, incompreendido.

Ademais, se o se refere ao amor, é um amor que ninguém conhece, só o romântico, que já pode enxergar a realidade longe da ideal e da modernizada, só ele enxerga a dessacralização dos valores da vida ocorridas coetaneamente a eles. 

E, ainda pela perspectiva do duplo, quando o eu lírico diz O abandonado de Deus, também se pode ver aqui uma dupla referência, pois se se refere propriamente ao anjo, é o que se espera por uma primeira leitura, mas também o romântico se julga abandonado por Deus, pois, diante de tanto sofrimento, desgosto, desespero, solidão, proporcionados pela mudança político-social moderna, Ele só o pode ter abandonado. 



Quanto aos choques existentes entre Romantismo e Classicismo, podem-se estabelecer também alguns aspectos, pois anjo é representação de algo ideal, contrário à razão, já que onde há razão não cabe subjetividade. Assim, o eu lírico tem o arrojo de amar um anjo sem luz ou sem Iluminismo? Um anjo sem razão. E se a ausência dela é consciente e subentendida, dizia o eu lírico: E o meu ser se dividia, entre a modernidade e o passado? O ideal e o real? Se o Romantismo é também a escola da contradição, ambas as possibilidades são certeiras porque eu, o meu ser perdi a razão e à vida não volveu. Ou seja, insurgiram-se contra a realidade e esvaíram-se até a morte, sem antes esvaírem-se no tempo, já que o anjo é a figura por excelência religiosa medieval – e aprece ser exatamente esse o tempo que o romântico tenta restaurar e não consegue: por sorte, pois o que retorna, se retorna, nunca vem exatamente como era. Mas, como o romântico precisa desse retorno, e a forma ideal e adequada é a literatura, ele escreve, e invoca o tempo perdido, o paraíso perdido, de maneira evasiva, negando o presente (ou a modernidade) e se alojando num esfera existencial muito particular. 

Embora, seja a figura do anjo uma evasão ou um retorno ao medievalismo, há neste poema, e talvez de maneira geral em Folhas Caídas, uma inversão do ideal de anjo, que sempre foi tido como uma figura assexuada e não erótica. Mas aqui o anjo, além de ser o objeto de amor do eu lírico (não custa lembrar que é um amor impossível), pode ser visto como uma figura erotizada porque se deixa desejar. E, como no medievalismo os anjos eram a representação da mulher e o que acontecesse de mal com quem amava, era culpa da mulher que não o amou ou que não sequer o olhou, neste poema o anjo, representando a mulher, talvez tenha morrido por ser anjo porque não é mulher. Assim, o eu lírico não enxerga nela seu apoio ou a projeção de seu ser, e sucumbe tal qual à morte. E, anjo sendo a representação do ideal, pode-se estender tal representação para o próprio conceito de Romantismo, que pode ser uma visão de mundo voltada ao passado e, assim, buscando o ideal como já foi dito.

 
Então, em Anjo Caído, anjo é o romantismo: sem luz, perdido dos céus, abandonado de/por Deus, desconhecido, rendido. E caído é a fraqueza, é estar dividido e incompreendido. E, dentro das possibilidades de interpretação do título de acordo com o que foi dito acima, se o anjo é Romantismo, se pode entender dessa forma um questionamento da própria literatura, pois o anjo está sendo questionado, foi abandonado por Deus e caído dos céus, está sem luz (= razão), da mesma forma que se sente o poeta ao escrever e este, questionando a si próprio, questiona em metaliteratura ou em metalinguagem a literatura, já que o concretizá-la é tão árduo quanto viver e o viver é tão questionável quanto ela.  

Assim, na poesia de Garrett, porquanto a morte não passa do corpo, que é nada ou quase nada no poeta, sua angústia subsistirá, pois se a angústia é dor da alma e a alma é o que persiste no poeta após a morte, nem o que ele julgava ideal o será. Assim, se persiste a angústia, persiste a poesia, que é a extensão daquela e o complemento do romântico.

Texto originalmente apresentado na disciplina de Romantismo Português na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

domingo, 3 de abril de 2011

O Desejo de Álvares de Azevedo



 O Meu Desejo
            
Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....

Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....

Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....

Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de languor!
            
            Álvares de Azevedo, em sua poesia "O Meu Desejo", joga com uma carga semântica e simbólica voltada ao sensual, como lhe costuma ser característico.
O poema conta com dois ambientes, dos quais, um deles representa uma festa (onde observa uma dama) e, o outro, o quarto dela, que, segundo parece, representam ambiente público e particular.
O primeiro ambiente é onde está, dança e se diverte uma dama. Por essa dama, o eu lírico nutre um desejo mesmo sexual, pois a simbologia e a semântica do vocabulário escolhido revelam tal desejo, principalmente tendo em vista a carga simbólica encerrada nas palavras luva e sapatinho, que, como tradicionalmente se observa, trazem o erótico em si: tudo o que se calça ou o que se veste, neste movimento repetitivo, em literatura, pode revelar o valor sexual implícito. Entretanto, por ela, a quem rende desejos sexuais, o eu poemático guarda uma distância porque, quando praticamente em todo o poema se lê sobre o que observa o eu lírico e não sobre o que põe em prática, sente saudades e estas são as saudades que tem aqui na terra... 


 
O segundo ambiente, o quarto dessa dama, traduz sua intimidade, já que se lhe entende, conforme se observa na poesia, como o lugar onde se despe, se deita e se mira no espelho com as graças nuas. Pelo levantamento léxico, para se comprovar tal intimidade do aposento, lemos os mistérios de teu leito, como se o leito, personificado, guardasse tudo o que visse e o que se lhe confessa. Ainda por tal levantamento,  percebe-se, neste ambiente um halo de velamento, de impossibilidade de realização do amor porque, o desejo do eu lírico é ser tudo o que está em volta, que, se a toca, o faz levemente, ou se não a toca, se mantém distante, deixando numa evidente posição de velador, observador do corpo, das graças e do sossego de quem ama, privilegiando somente seus sentidos visual e olfativo e seus desejos, o que confere a este amor uma carga puramente sensual por não haver o contato físico carnal.
O que, a esta altura da leitura, pode-se entender como certa inversão de valores  que se dá a partir do amor que se observa subordinado às ambientações. Assim: esperaria-se que, em princípio, lá no baile, o eu lírico sentisse pela dama um amor sensual, despertado pelos sentidos, principalmente pela visão, pelo olfato e pelo tato. Depois, numa esfera mais particular, mais íntima, se percebesse o sexual, pois que, então, na intimidade do leito a liberdade entre eles pudesse levá-los a isto.
Entretanto, como dito, se observa o contrário, e assim pode-se  notar que o eu lírico talvez entenda, lá no baile, o sexual como pulsão, como atração momentânea, que logo passa e que se pode associar então ao arrebatamento do que ele próprio repete seis vezes: o meu desejo. É este o Álvares de Azevedo: o que se lhe revela carnal não passa de um desejo, fruto de sua imaginação.
E, da mesma, forma se pode ver talvez que, quando da intimidade, o sexo lhe fosse propício, surge em cena o amor, que no entendimento do poeta talvez seja aquele mesmo de guarda, de velamento, aquele que somente estando próximo ou estando a  observar, oferecendo-lhe no máximo um abraço ou um acolhimento junto ao peito satisfaça seu desejo, agora sensual, nutrido por aquela dama angelical e pura, que dorme calmamente enquanto, ou porque, ele a vela. 


 
E talvez esse amor sensual, numa ampliação da leitura, subordinado à ambientação da intimidade, seja a forma mais interna, e por isso sincera, de amar, porque ele se passa no interior do leito e a interiorização de um ambiente, como a interiorização de seu sentimento, que livre dos olhares curiosos ou reprovadores do público, não precise ser o sexual como se espera socialmente, bastando-llhe a ternura da companhia e da maciez do colo e do leito. Talvez, e além disso, seja este o amor mais importante, porque é para ele que se dedica a maior parte formal do poema, quatro das seis estrofes.
Desta forma, o que também se pode depreender da leitura do poema é que o amor sincero do eu lírico não corresponde ao que se esperaria do sentimento, enquanto valor social, porque livre dessas amarras, bem ao gosto romântico, o amor é ideal, pela mulher ideal, em que, em sua intimidade e velamento, é verdadeiro e, por isso, eterno, e por uma perspectiva de individualização romântica, vê-se o eu lírico guardando e velando sua amada sem expô-la aos valores aos quais ele se opõe conscientemente.


Texto originalmente apresentado na disciplina de Romantismo Português (sim!) na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sobre O Concílio Dos Deuses Em "Os Lusíadas"






      Quando, entre os séculos VII e VIII d. C., os árabes, em franca expansão pelo norte da África, alcançaram a Península Ibérica e por lá ficaram mais tempo do que o Brasil tem de história, aquele povo bloqueou o Mar Mediterrâneo, ecoando sobre seus promontórios que nada de ideologia e procedência cristã se faria flutuar nas águas do antigo Mare Nostrum.
                Assim é que Portugal só nos séculos XV e XVI, precisando, dadas as condições religiosas (a Reforma Protestante, que já anunciava suas marcas pela Europa), econômicas (o crescimento do capitalismo, que se fez com a difusão do grande comércio nas regiões italianas e em Flandres), políticas (a formação dos Estados Nacionais) e ideológico-intelectuais (o Renascimento, as riquezas humanísticas e as ciências) de seu tempo, alcançar novos caminhos para as Índias e delas extrair as especiarias das quais a Itália detinha o monopólio, não podia ir pelo Mediterrâneo, já que era e é país cristão, e pelo mar encurtar o caminho às Índias. Mas, como detinha, a frente de todos os países ocidentais, os segredos e as técnicas para lidar com o Reino de Netuno, organizou corajosamente um empreendimento de viagem às terras desejadas, costeando o litoral africano e lançou-se ao Mar Tenebroso.         
Desta viagem é que resulta o esplendor econômico português, porque dela Vasco da Gama obtém lucros de 6000% sobre o comércio das especiarias; o esplendor político, porque Portugal domina as técnicas de navegação em mar aberto e disto redunda o descobrimento do Brasil; e o esplendor literário, porque de muito dinheiro circulante e poder político se tem normalmente manifestações culturais, do que redunda a obra magna da Língua Portuguesa em 1572: Os Lusíadas.
Logo, um dos aspectos da obra que mais chama atenção, considerando-se o aspecto cristão das intenções artísticas e políticas de Portugal, é a impregnação de deuses pagãos a todo tempo e ao longo do poema, do qual ressalta o Concílio[1] dos Deuses já no primeiro canto antes do início da narração propriamente dita.
É preciso considerar a épica em que se manifesta Camões e seu tempo: o Renascimento, que exigia determinadas atitudes artísticas. Assim, se o Renascimento se volta aos valores da Antigüidade Clássica e este período era por excelência pagão e politeísta, tem-se aí uma das primeiras justificativas para a presença de elementos pagãos na obra, mesmo que o objetivo da ficção lusíada tenha sido a cruzada de levar a fé cristã católica ao Oriente, ou melhor, aos infiéis maometanos. Esta organização real e ficcional da e na obra reflete o aspecto vigente no século de Camões, o XVI, em toda a Europa: as guerras religiosas, encaradas como bandeira política.  


 Portanto, sendo uma obra épica, a presença dos deuses é fundamental e a interferência deles não apresenta vínculos doutrinários com o paganismo, já que Os Lusíadas são uma obra claramente cristã pois se percebe, por exemplo, quando Vasco da Gama e sua frota chegam a Madagascar e ele se apresenta, se enfurece por ter sido confundido com um turco. Assim, os deuses entram em cena para dar unidade épica à narrativa e, desta forma, tirá-la da monotonia tornando-a mais interessante. O resultado é uma certa inversão de papéis: os humanos são quase sempre representados hieráticos e impassíveis, sóbrios e determinados enquanto os deuses são irrequietos, indecisos, movidos por inveja, ciúme e etc. A presença da mitologia na obra caracteriza-a como renascentista e, tendo Os Lusíadas dois planos (o mitológico e o histórico), a mitologia cumpre função simbólica, já que os deuses representam o limite ideal a que tende a espécie humana e que são imagem de plenitude e perfeição.
Diante deste aspecto renascentista, o concílio dos Deuses no Olimpo, convocado por Júpiter - pai dos Deuses, é um modo de ligar os deuses pagãos com a viagem portuguesa. Será no Olimpo que se decidirá “sobre as cousas futuras do Oriente”, diante das quais se encontrará Portugal, de acordo com a vontade do Destino. E, ainda quanto ao aspecto renascentista, destaca-se o fato de os feitos narrados pelo eu-lírico serem façanhas, façanhas não de deuses ou semi-deuses, mas de homens comuns, bravos e corajosos, destemidos, que são os portugueses das Grandes Navegações. Assim, tem-se o antropocentrismo típico da época em que renascem os valores greco-romanos.
A disposição hierárquica que é feita nesta reunião se apresenta de maneira que os deuses considerados menores (os deuses dos “sete céus”, de acordo com o sistema ptolomaico) exponham também as suas opiniões a respeito ou não da armada portuguesa seguir em direção ao Oriente. Júpiter profere o seu discurso, anunciando a sua condescendência ao prosseguimento da viagem dos lusitanos e ordena que estes sejam recebidos amigavelmente na costa africana. Júpiter diz que o fato de os portugueses enfrentarem mares desconhecidos e de estarem decididos a fazer os orientais esquecerem, por meio dos feitos lusos, os Assírios, Persas, Gregos e Romanos, é motivo para que a navegação aconteça. Ou seja, a presença da cultura ocidental lusa suplantaria qualquer outra cultura, considerada "errada" tanto mitológica quanto historicamente.


 Após tal discurso, são consideradas outras posições em que se destaca a oposição de Baco, pois este receia perder a fama que havia adquirido no Oriente caso os portugueses atinjam seu objetivo, pois ele teria ensinado aos orientais a arte de fazer vinho e, assim, por lá ele era adorado. Uma outra posição de destaque é a de Vênus que defende os portugueses não só por se tratar de uma gente muito semelhante à do seu amado povo latino e com uma língua derivada e bem próxima do Latim, como também por terem demonstrado grande valentia no norte da África. É também Marte - deus da guerra - um deus defensor da gente lusitana, porque o amor antigo que o ligava a Vênus o leva a tomar essa posição e porque reconhece a bravura deste povo. Em seu discurso, Marte pretende que Júpiter não volte atrás com a sua palavra e pede a Mercúrio - o deus mensageiro - que colha informações sobre a Índia, pois começa a desconfiar da posição tomada por Baco. Este concílio termina com a decisão favorável aos portugueses e a narração histórica começa com a frota de Vasco da Gama em pleno Oceano Índico.
Assim, partindo para a análise do Concílio dos Deuses, tem-se como objeto de estudo as estrofes 20, na qual se vê a convocação dos Deuses; a 35, quando Baco e Vênus se debatem verbalmente, defendendo suas posições e, finalmente, a estrofe 42, quando a gente belicosa (mas em conflito estão os deuses!) já se encontra no canal de Madagascar.
A estrofe vigésima da epopéia camoniana reflete a forma de ver o mundo e a ideologia de seu tempo. Nela, há a ocorrência do termo científico Via Lactea em confronto com Olimpo luminoso, Onde o governo está da humana gente, (...). O que se percebe é que, para Camões o aparato mitológico constituía um artifício criado por suas tendências lúcidas de artista. Assim, esse aparato nada mais é do que uma ironia da qual se depreende a cautela com que o poeta trata os deuses, mantendo-os invisíveis para os nautas, sem ações e influências manifestas na ação lusíada. São mais ou menos como fantoches que se comprazem e, de acordo com o povo latino que representam, são ociosos, pois não alteram as forças naturais de que a trama resulta e das quais decorre como se a intervenção divina fosse mero recurso, insignificante à obra.
                E, ainda, a junção de elementos opostos (pelo menos aparentemente) pode representar a natureza também dupla de Camões, já que ele, sendo fruto de um momento de mudanças de ordem estrutural na sociedade, na política e na economia da Idade Moderna, participou ativamente disso tudo. A respeito disso, José Régio justifica: "Se a simples influência literária dos seus mestres clássicos, ou do gosto renascentista, bastaria a explicar superficialmente a introdução n’Os Lusíadas do maravilhoso pagão, não se poderá aventar que, mais fundo - mais fundo que uma submissão aos preconceitos da época, ou, até, exigências estéticas de qualquer ordem -, um impulso natural do poeta o arrasta para esses deuses tão humanos, essas deusas tão tentadoras, como outro, porventura, mais nobre, o leva a não poder pôr de parte uma concepção superior da Divindade?" Assim é que, renascentistamente, tem-se o antropocentrismo pagão e a religiosidade cristã no espírito da época e no de Camões. Logo, a estrutura do poema como um todo é uma metáfora do mundo, tal como o homem da Renascença o concebia. Daí se entender, também e talvez, o fato de o povo luso ser o personagem coletivo da obra, já que o poeta canta o peito ilustre lusitano e não um lusitano qualquer.
             A estrofe 35, depois da oposição de Baco ao desejo de Vênus, apresenta então ao mesmo tempo a verve do poeta e a fúria dos deuses, sempre apresentados por meio de prosopopéias, já que, na concepção contemporânea, são deuses que agem como seres humanos, embora a explicação da Antigüidade fosse a de que os homens são como são porque eles são iguais aos deuses. Aqui a eloqüência do poeta se mistura ao fervor da ira celestial de maneira homogênea, conforme ele próprio sabia e havia pedido às Tágides:

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda:
Que se espalhe e se cante no Universo,
Se tão sublime preço cabe em verso. (I, 5)

Assim, dado a ele igual canto da gente das Tágides, a ira da gente olímpica

Rompendo os ramos vão da mata escura,
Com ímpeto e braveza desmedida;
(Brama toda [a] montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida):
Tal andava o tumulto, levantado
Entre os deuses, no Olimpo sagrado. (I. 35)

se mistura à sua verve e ao feitio divino, já que parece ter as Tágides lhe atendido. 

                E, por fim, na estrofe 42, tem-se novamente o confronto entre o terreno e o divino, sobre o qual já se falou acima, típico da visão renascentista da época: a já referida imitação clássica dos modelos greco-romanos e a exaltação do homem na sua conquista de novos caminhos marítimos com vistas a ampliar suas atividades comerciais. Entretanto, com as estrofes estudadas e os versos
               
Enquanto isso se passa na fermosa
Casa do Olimpo o[m]nipotente, (I, 42)

pode-se pensar no narrador que, como o Olimpo, é onipresente e, assim sendo, segundo Salvatore D'Onofrio, se desdobra em vários focos, quase mesmo numa polifonia, como entendeu o termo Backtin. Os focos podem ser: a) pelo ponto de vista do eu poemático (ou eu lírico), b) o do narrador onisciente e c) o ponto de vista das personagens narradoras  - que estão presentes em todo o poema e nas estrofes analisadas.
                Nas  20a e 35a estrofes, por exemplo, podemos perceber o narrador pelo ponto de vista do eu poemático, já que o "eu " que fala é confundido com o "eu" do poeta, embora, nos alerta D'Onofrio, não haja identidade entre o narrador do poema e o autor da obra. Assim, continua o crítico, este ponto de vista sugere a participação subjetiva do poeta no complexo dos fatos narrados, quando se inclui, o poeta ou o narrador?, no seguinte verso:

Onde o governo está da humana gente, (I, 20)

a humana gente é toda a gente da terra, ora.
                Ainda nesta estrofe, o narrador também pode ser entendido pelo ponto de vista do narrador onisciente, pois, neste caso, diz o crítico, ao lado da voz do eu poemático devemos salientar a função do narrador geral do poema, que faz o relato dos acontecimentos usando a terceira pessoa do singular. Esta focalização se distingue da primeira por apresentar-se como objetiva: o narrador é um ser onisciente e onipresente, que sabe tudo a respeito de todos. Colocado numa posição privilegiada, “por detrás” das personagens humanas e divinas, ele descreve fatos, idéias, sentimentos, que ocorrem na terra e no mar, no céu e no inferno, no passado e no presente. Esta focalização atua na parte maior do poema épico, a que chamamos de Narração. N’Os Lusíadas, começa a partir da estância 19 do canto I  “Já no largo Oceano navegavam.”...


                Assim, o narrador do poema já sabe a intenção do concílio, bem como os deuses:

Se ajuntam em consílio glorioso,
Sobre as cousas futuras do Oriente. (I, 20)   
               
                Na 35a. estrofe, há também o ponto de vista das personagens narradoras, já que ali, conforme se viu acima, além de haver um entrelaçamento do poeta e do feitio dos deuses, há uma forma divina de entender e encarar a realidade de acordo com os preceitos greco-latinos de deusificação:

Com ímpeto e braveza desmedida;
(Brama toda [a] montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida): (I, 35)

Por fim, na 42a. estrofe, temos a voz pelo ponto de vista do narrador onisciente e histórico, posto que agora se inicia a narração propriamente dita e, por várias vezes, este narrador cederá a voz, em primeira pessoa, a Vasco da Gama. Porém, ainda na 42a. estrofe, podemos perceber a onisciência do narrador quando este diz, usando a terceira pessoa:

Cortava o mar a gente belicosa
Já lá da banda do Austro e do Oriente, (I, 42)

                Desta forma, o que se pode ver diante da magnitude, amplitude, diversidade de aspectos teóricos possíveis acerca de Os Lusíadas é que este artigo não corresponde nem a um milionésimo do que se poderia ter feito e ao que se tem feito sobre tal obra. Assim, diante disso, proposta por D'Onofrio (até onde se tem notícia) a questão da polifonia presente nos diversos tipos de narradores observáveis (já que é evidente e não é novidade a utilização de vários fatos e acontecimentos históricos, passagens mitológicas, recriação da realidade etc, etc por Camões sob prismas diversos) ao longo da epopéia constitui o aspecto mais interessante, quando não contemporâneo, da forma de se estudá-la. Mas, estudá-la como um todo, pois a fragmentação dela compromete seu entendimento completo, eficaz e contínuo, além de comprometer a criação artística. 

Texto originalmente apresentado na disciplina de Renascimento Português na Universidade de Brasília - UnB.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.
 
BIBLIOGRAFIA:
AQUINO (org.). História das Sociedades: das comunidades primitivas às sociedades medievais. 13a. ed. Ao Livro Técnico: Rio de Janeiro, 1995.
AQUINO (org.). História das Sociedades: das sociedades modernas às sociedades atuais. 30a. ed. Ao Livro Técnico: Rio de Janeiro, 1993.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Martin Claret, 2001.
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas; adaptação de Edson Rocha Braga. São Paulo: Scipione, 1998. Série Reen-contro Infantil.
DICIONÁRIO CONTEMPORÂNEO DA LÍNGUA PORTUGUESA CALDAS AULETE. 2a. ed. brasileira. 5 vols. Rio de Janeiro: Delta, 1970.
DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001.
D'ONOFRIO, Salvatore. A poesia épica na Renascença. in Da Odisséia ao Ulisses – Evolução do gênero Narrativo. Livraria Duas Cidades. (em http://planeta.terra.com.br/educacao/csgiusti/Apoio/salvatore.htm).
ENCICLOPÉDIA DELTA LARROUSSE. Ed. Delta, Rio de Janeiro, 2a. ed., 1969.


[1] ou consílio (forma usada por Camões). A emenda concílio, que adotam alguns editores, segundo Evanildo Bechara, não se faz necessária. Porém, A. Houaiss admite as duas formas uma correlata à outra.