segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Nelson Rodrigues - Um Anjo Mal Interpretado!


Nelson Rodrigues em sua foto mais célebre - Internet
Nelson Rodrigues começou pra mim de duas maneiras. Primeiro minha mãe horrorizada e dizendo, com sua ênfase exagerada peculiar e hereditária: Esse homem é um podre! E depois, eu ainda adolescente pude assistir, sendo talvez a única coisa que prestasse no semanário dominical de péssimo gosto, Fantástico, da Globo, aos episódios inspirados nos mais legais contos de A Vida Como Ela É...

Confesso que o fato de minha mãe dizer sobre ele –podre!– me instigou. Queria ver como e por que ele era assim podre! Hoje, depois de abandonar inexoravelmente a adolescência, momento em que o conheci, digo que Nelson Rodrigues, na minha humilde opinião, é um gigante da língua portuguesa. Um avatar contra as hipocrisias morais e sociais. Um paladino da moral. Um anjo pornográfico no dizer dele próprio. Genial e profícuo escritor, dono de um estilo literário peculiar. Um tarado, depravado, podre? Talvez, mas, indiscutivelmente, certeiro porque, se na sua família, caro leitor, não há nenhum dos exemplos da galeria rodrigueana de personagens (Claro que não! Na sua família? Nunca!), certamente você conhece alguém na sua rua, no seu prédio, no seu trabalho (de nome no diminutivo Ferreirinha, Glorinha, Dorinha, Otavinho) que se comporta como um típico personagem de seu elenco superior! Ou é, homem ou mulher, uma fofoqueira, invejoso, religiosa rezadeira e ao mesmo tempo mentirosa, tarado que passa a vida posando de bom moço. É Nelson Rodrigues um gênio incompreendido. E mais, muito mais!

Nelson Rodrigues é, antes de tudo e para começar, um exímio observador e descortinador da alma humana no que ela tem, a um só tempo, de mais secreto e evidente: a hipocrisia!

Mas, antes disso de hipocrisia, a vida de Nelson Rodrigues é típica do teatro de Nelson Rodrigues! Uma tragédia.

Ainda no começo da faculdade, naquelas disciplinas de Teoria Literária, teve uma aula em que discutíamos um crítico francês, se não me engano Dominique Mainguenau, que, grosso modo, defendia ardentemente que uma obra de arte literária é imanente aos detalhes mínimos da vida de um homem que por acaso é o escritor. Ou seja, a obra de arte literária é independente de quem a escreve. Outros vão contra, também porque, se sabe, as ciências humanas são dependentes do ponto de vista. Tanto melhor, já que, ao ler e estudar Nelson Rodrigues, não há como separar de sua obra sua vida, assim como não se precise saber de sua vida para saber de sua obra. Ela é imanente a isso, sem dúvida. Mas também fornece a quem a lê detalhes impressionantes ou, no mínimo, elucidativos de sua história.

Seu avô, homem rico, morreu de doença misteriosa na Europa. Sua avó, ainda grávida, volta ao Recife, de onde sua família é originária. No parto, ela morre. Os filhos, um deles Mário, o pai do futuro Nelson, ficam tutelados com um médico da família, o qual, segundo parece, apropriou-se indevidamente do dinheiro deles. Isto obriga os meninos a cedo trabalharem. Mário trabalha escrevendo, de jornalista, num Recife circa 1912, momento em que não era nada pacífico, dadas as querelas locais acerca do poder na capital do nordeste canavieiro e por todo o estado de Pernambuco. Mario casa-se com menina, dona Esther, de família protestante fervorosa, convertendo-se à sua religião. O que, também segundo parece, conversão de situação, tão somente para o casamento desejado. Mário tem problemas financeiros, mas dona Esther quer 12 filhos. Ela, firme, praticamente o obriga a deixar o Recife e ir ao Rio. Ele vai, mas volta. Ela o obriga de novo, ele vai. Ela, no Recife, vende tudo e segue com a então parte da prole para o Rio, e chega bem na hora em que o marido está desempregado.

São acolhidos no Rio, em 1916, na casa de Olegário Mariano, o Poeta das Cigarras. Mas logo Mário Rodrigues (que era gago e cego de ciúmes), se arruma, conseguindo emprego de jornalista no Rio, no Correio da Manhã, quando se muda com sua família para uma casa de subúrbio no Rio de Janeiro.

A este ponto que queria chegar: ao subúrbio. Onde estão as maiores inspirações de Nelson para sua obra se não nos subúrbios? Os tipos representados por ele, com exceção feita aos seus folhetins (e ainda assim falo considerando tão somente Meu Destino é Pecar e Asfalto Selvagem, porque são os únicos dois folhetins lidos por mim – até agora!), são em sua maioria suburbanos.

Caricatura de Nelson - Internet

Foi neste subúrbio no Rio, precisamente na Aldeia Campista, Rua Alegre, em que Nelson com seus 7 anos viu o mundo. Um mundo de vizinhas gordas e de brotoejas, às janelas observando tudo e todos, casadas com maridos magros e asmáticos, quando não tuberculosos, a tossir em uníssono. Nas casas suburbanas por que passou havia sempre a nojenta escarradeira, o banho era de bacia, os velórios eram em casa – os quais eram assiduamente frequentados pelas senhoras, mas para observarem o real sofrimento da viúva (este, um indício da hipocrisia).

Nelson, porque criançola ainda, aos 4 anos, estava de beijos, ou tentativa de, com uma garotinha de 3, foi logo, desde cedo, taxado de tarado e entende, aí, que algumas coisas lhe eram proibidas. Em seguida, vai à escola, onde era hostilizado pela sua cabeça grande e por já ter pelos nas pernas aos 7 anos. Por essa época escreve uma redação que já traz o embrião das tragédias que serão sua obsessão. Tal texto, que começa, inspirado no verso do poema As Pombas de Raimundo Correia, com “A madrugada raiava sanguínea e fresca”, horrorizou os professores e diretores porque se tratava, ora essa, de traição e assassinato.

Nesta casa suburbana, no sótão, eles acham um diário perdido e esquecido de uma adolescente, ex-moradora dali. Por essa época, morreu uma jovem vizinha deles, chamava-se Alaíde. Quem leu Vestido de Noiva sabe a importância e a influência que teve este diário encontrado em sua casa em sua meninice. E também quem leu essa mesma obra sabe quem é Alaíde no contexto rodrigueano.

Por essa época, também, lê Dostoievsky. Lê Victor Hugo, Zola, Camilo Castelo Branco, Machado, Eça, e o recém-falecido Augusto do Anjos. Este, ele declamava aos berros às suas paqueras, correndo atrás dos carros delas, querendo impressioná-las. Impressionar um amor adolescente com Augusto dos Anjos?!

Por esses dias dirige um suplemento de A Manhã, Alma Infantil, que ele faz imprimir e distribuir – em Recife – às escondidas e aproveitando-se do aparato do jornal de seu pai, atacando o padre diretor de um colégio recifense, no qual estudava seu primo, e acusando o religioso de perseguição e maus tratos ao garoto. Circulou pelo tempo em que Nelson se interessou por ele, 3 ou 4 números.

Desenhos de Roberto Rodrigues, irmão de Nelson, para o Jornal da família - Internet

Ao ler sua biografia, deliciosa narrativa de Ruy Castro, observei seu tempo e suas atitudes, refletindo (o que as leituras, quaisquer que sejam, devem fazer), sobre o biografado inserido em tal contexto. Nelson Rodrigues e seus irmãos, seu pai também –em certa medida–, eram resultantes ou concomitantes ao pensamento modernista. Digo: eles eram extremamente bem adaptados às ideias e ao comportamento moderno de sua época. Eles inovavam não só no comportamento, mas também, por exemplo, no aspecto gráfico do jornal da família, acompanhando o que Lobato já fazia anos antes.

O traço das caricaturas de Roberto Rodrigues (seu irmão), amigo de Cândido Portinari, ambos estudantes na Escola de Belas Artes do Rio, era revolucionário. Os dois, ainda na Escola, para driblar o pensamento academicista de seus professores, ao apresentarem seus trabalhos voltavam às técnicas tradicionais, enquanto o trabalho autoral, o verdadeiro, de ambos era de choque e de crítica contra a academia. Nelson não era diferente. Seu estilo, observado em seus textos, com sua pontuação peculiar e seu metralhar de argumentos e ideias, também o provam. Suas peças de teatro estouram principalmente a partir de Vestido de Noiva, de 1943, obra a qual, pela quebra da narrativa linear e pela construção e caracterização de seus personagens, antes de genial, é resultado claro do tempo em que viveu: o modernista. As reivindicações de 1922 estão todas nesse trabalho!

Fotografia oficial (uma das poucas) do espetáculo de estreia de Vestido de Noiva, 1943 - Internet

Tal tempo modernista se vê quando, no Rio de Janeiro, a convivência dos Rodrigues, não só nos tempos de sua chegada à cidade como ao longo da vida deles, era com gente da melhor qualidade: Cândido Portinari, Nássara, Gilka Machado, Olegário Mariano, Manuel Bandeira, Monteiro Lobato, Orestes Barbosa, Donga, Lamartine Babo, Ronald de Carvalho, Medeiros e Albuquerque, Di Cavalcanti, João Cabral de Melo Neto, José Lins do Rego, Sérgio Milliet, Gylberto Freire, Millôr Fernandes, Ary Barroso, Ataulfo Alves, Silvio Caldas, Heitor dos Prazeres, Paulo Mendes Campos, Dercy Gonçalves, Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Procópio Ferreira, Dulcina de Moraes e, é claro, Zienbinski, e toda a turma em torno de suas primeiras peças, como Décio de Almeida Prado, Otto Maria Carpeuax, Fernanda Montenegro, Fernando Torres e mais adiante Augusto Boal.

Fernanda Montenegro e Nelson, 1974 - Internet

E o contexto social e político, e ainda cultural principalmente, também não eram indiferentes a tudo isso: Epitácio Pessoa, Nilo Peçanha, Arthur Bernardes, Afonso Pena, Pandiá Calógeras, Alceu Amoroso Lima, Getúlio Vargas, Simões Lopes, Washington Luís, Carlos Lacerda e seu pai Maurício de Lacerda, os Matarazzo, dom Jaime de Barros Camara, dom Helder, Roberto Marinho e muitos outros.

Nem todos grandes amigos, alguns desafetos, outros amigos e depois desafetos, outros desafetos e depois amigos, mas todos grandes nomes em convívio num mesmo tempo e num mesmo espaço.

Além deles, também todo o universo esportivo e futebolístico de seu tempo, com seus figurões e grandes atletas, dos quais este que vos fala não saberá enumerar um sequer por ser este universo muito distante e desinteressante para ele...! 

Quando o pai de Nelson, Mário Rodrigues, se estabelece como jornalista e proprietário do matinal carioca A Manhã, o jovem Nelson e seus irmãos convencem o pai a trabalharem com ele. Roberto, o seu irmão bonitão, era desenhista e artista plástico, como já dito, ficando assim responsável pela arte, desenhos e caricaturas do periódico. Nelson, então aos 13 anos, ganha a coluna que também mais tarde lhe serviu de inspirações literárias e folhetinescas porque ele noticiava casos de juras adolescentes de amor eterno ao luar, que normalmente acabavam em tragédia. E, além de noticiá-las, Nelson também aumenta, melhora, faz suspense, cria e recria detalhes para “interessar” mais os leitores. Os leitores de hoje de Nelson, ao lerem rapidamente e por exemplo rápido, Asfalto Selvagem e Álbum de Família, percebem a relação direta de sua obra e o convívio com esse tipo de matéria e assunto.

Capa de uma das edições de A Manhã - Internet

A Manhã ia se estabelecendo como jornal de situação e a influência, a fama, a importância, não só do jornal como também dos Rodrigues ia crescendo em igual proporção. Era um jornal de grande penetração e muita aceitação por parte da sociedade leitora. A Manhã se converte em Crítica, jornal do mesmo Mário Rodrigues, e, um dia, um dos detalhes impressionantes da vida de Nelson: acontece o assassinato de seu irmão Roberto na redação do jornal da família.

O Rio descobre uma mulher que traía o marido com seu médico. O jornal de Mário Rodrigues vai publicar o escândalo! Porém, antes da publicação, seus repórteres telefonam para ela, Sylvia Thibau, para que concedesse uma entrevista de esclarecimentos. Ela diz que não fala ao telefone, mas que vai à redação de Crítica tal dia e hora. Antes, ela passa na redação de outro jornal, O Jornal, do qual era colaboradora, e também vai à redação de Diário da Noite, dos Diários Associados de Assis Chateaubriand, para que jornalistas amigos tentassem e conseguissem bloquear a matéria. Mas não conseguiram, de maneira que ela pessoalmente se dirige a Crítica. Pede-lhes que a matéria seja suspensa, mas àquela hora, nada mais poderia ser feito, já que o jornal já estava fechado e na gráfica, pronto para ser impresso, se não impresso. Ela ainda fala com mais um funcionário de Crítica, o desenhista e caricaturista Roberto, quem não lhe garante nada, dada a hora, mas que também tenta acalmá-la, dizendo-lhe que ela seria tratada com atenção e consideração e tal. Além do mais, era ele só o desenhista, não tinha nada com a matéria!

Roberto Rodrigues, o irmão assassinado - Internet

No dia seguinte, sai o jornal, com tal escândalo na manchete. A senhora, friamente, leva os filhos à escola, no caminho compra numa loja de armas uma calibre 22, entra na redação de Crítica procurando Mário Rodrigues, que não estava. Pergunta também por Mário Rodrigues Filho, que também não estava. Vai conferir e encontra, então, Roberto em quem atira uma só vez e acerta o abdômen do desenhista. Quando a desarmam, ela ainda diz que queria matar o senhor Mário ou o seu filho, mas que estava satisfeita. Nelson assiste à cena e a família entra em crise por motivos óbvios, entra em processos judiciais, julgamentos, etc., contra Sylvia Thibau. Roberto é velado e a todos que entram seu pai lhes grita, agarrando-os pelo braço: Esse tiro era para mim! Para mim! E, indo ao caixão e olhando o corpo do filho, dizia: Eu vou te vingar! Eu vou te vingar!

Autorretrato de Roberto Rodrigues - Internet

Tempos depois, Sylvia era julgada e inocentada. Os Rodrigues perdem o pai Mário de trombose cerebral. Era 1930 e os augúrios políticos no Brasil agora sopravam contra a República do Café com Leite, regime defendido pela Crítica. Ou seja: com o pai morto, a política do país agora liderada por Vargas, inimigo dos Rodrigues, então o jornal fecha empastelado, entre tragédias, mortes e a Revolução de 30. A família de Nelson Rodrigues então enfrenta a penúria e a tuberculose, sem dinheiro e praticamente sem comida praquele tanto de gente.

Sylvia Thibau - Internet

Nelson contrai tuberculose várias vezes; seus irmãos, e ele também, amargam penúria, quase fome. Mas apesar das intempéries, de sérios e grandes pesares, eles se refazem. Devagar, mal e com muitas dificuldades se refazem. Mário Rodrigues Filho monta e abre seu jornal. É este irmão de Nelson um grande jornalista e um grande homem da sociedade carioca, já que, dada sua vontade de vencer e seu talento indiscutíveis, é de sua concepção e execução projetos e eventos que hoje representam não só o Rio como o Brasil. É de sua autoria a ideia de os times cariocas competirem entre si. Tal evento esportivo, muitas e tantas vezes patrocinado exclusivamente por ele, resultaram no Campeonato Carioca e no Campeonato Brasileiro, o que hoje, embora o autor deste texto não saiba falar certo e direito, sabe porém que são eventos de grande apelo social no Brasil. Este seu projeto impulsiona, mesmo tendo como figura central contrária, o peso de um Carlos Lacerda, a construção do Maracanã, cujo nome é dado em sua homenagem, Estádio Mario Filho.

É de sua autoria também o incentivo da competição entre as escolas de samba do Rio de Janeiro, evento que, apesar das críticas passíveis e embora seja DO Rio de Janeiro, querendo ou não, feliz ou infelizmente, representa a cultura brasileira...

Refeitos os Rodrigues, Nelson sempre trabalhou como jornalista e como jornalista era ele o grande incentivador e o maior publicitário de si mesmo. Ele era, o que se pode dizer, um cabotino. Ele próprio se defendia e se anunciava, às vezes assinando seu nome, às vezes pseudônimos, às vezes nem assinava. Mas escreveu muito em sua defesa e explicando o que produzia para o entediante teatro de seu tempo. E precisava fazer porque os de seu tempo, já em seu tempo, viravam-lhe a cara, torciam-lhe os narizes, discriminando-o ou hostilizando-o mesmo. Seu teatro era então um absurdo!

Nelson Rodrigues em cena em Perdoa-me Por Me Traíres (1957) - Internet

Mas por que era um absurdo? Ou ainda: Por que é um absurdo? Será porque ele descreve o comportamento moral da sociedade brasileira? Um comportamento hipócrita, um comportamento, que como tal, é algo praticamente coletivo e usual, mas que acontece por baixo dos panos e, como nossa cultura só permite por baixo dos panos e não às claras, quando alguém a descortina é ele um tarado? Um tarado obsessivo porque tão somente mostra e aponta a ferida moral social?

É claro, nosso mestre exagera. Mas ele está fazendo palco. O exagero é um artifício, é uma estratégia teatral e dramática, mas o que não retira a força de uma crítica social contundente. É claro que não vemos alguém se automutilar, cortando-lhe seu órgão genital em protesto a um segredo guardado e escondido por anos e só revelado tarde demais. Será mesmo que não?

É claro que não vemos nem veremos a competição entre duas irmãs, odiando-se uma e outra mortalmente, pela posse do amor de um mesmo homem. Será mesmo que não?

É claro que não vemos mulheres casadas, donas de casa, afetuosas para com seus filhos e maridos, que saem à tarde para o encontro, casual e proibido, com outro homem, também casado e, àquela hora e dia, matando um dia de serviço. Será mesmo que não?

Claro que não vemos maridos, honestos e honrosos de seus deveres domésticos e sociais, saírem madrugada afora em busca de uma aventurazinha qualquer. Será? Nem vemos casos de homossexuais obrigados a abdicarem de sua natureza em função de um casamento de arranjo –moral, social, familiar. Claro que não, ora essa!

Mas se tudo isso é evidente e salta aos olhos, recheia programas vulgares de TV e de rádio e até novelas campeãs de audiência, recheia a vida ociosa de velhas hipócritas e mexeriqueiras de janela e de banquinhos de praça, por que não levar tais temas aos palcos? À literatura? Por que não? E, se sim, levando ao palco, por que quem os escreve é ele, para usar os epítetos de sempre, o obsessivo e o tarado? E por que não seria ele somente o que ele era e queria ser: o crítico dessa falsa moral? Ou, ainda, por conseguinte, um dos senão o maior dramaturgo, da língua portuguesa, não só pela coragem de fazê-lo, pela atitude modernista, mas pelo óbvio e evidente estilo literário de grandiosíssima qualidade?!

Minha intenção para agora era passar à análise de uma de suas peças, tentando dar respostas às perguntas acima. Já até a tinha escolhido. Queria falar sobre Álbum de Família (escrita em 1946, liberada em 1965 e somente encenada pela 1a. vez em 1967), obra que me chocou quando a li, e li adulto já, mais de 40 anos depois de sua publicação. Era a intenção, como ia dizendo. Mas o texto já vai longo. Me preocupa a paciência do meu leitor –se houver um. Então faço uma rápida, rápida mesmo, análise tão somente para me satisfazer ao dizer acerca do que sinto sobre esse texto.

Internet

Lido Álbum de Família, quis encená-la, com meus amigos mesmo. Produção mais que amadora. Caseira. Acontece que eles não a leram e, como não somos nem éramos profissionais, meu fito malogrou. Tudo bem. Ou menos mal. Não saberíamos conduzir aquele complexo drama familiar ao seu ápice como pede o texto. Passada minha vontade inicial, volto à peça com certa frequência, de tempos em tempos, às vezes menores, às vezes maiores. Mas sempre, sempre mesmo, o que me incomoda, o que me chama atenção, o que me choca é aquela menina, aparentemente tendo sido estuprada por Jonas, o patriarca da família personagem o qual, cumpre observar, guarda uma incrível semelhança física com Cristo, grita e geme praticamente toda a peça. Tal personagem está em trabalho de parto e, enquanto a cena se desenvolve, ela grita. A cena corre um pouco mais, e ela grita. Às vezes alguém em cena faz menção ou por incômodo, ou por irritação, ou por pena (passageira) e ela grita. Ela grita sem sequer aparecer uma só vez em cena. Seus estertores são e estão em off. Até que, no fim da peça, ela enfim morre por ser "estreita", conforme dizem todos (Jonas e sua mulher dona Senhorinha, tia Rute e os filhos do casal em cena).

Além do mais, cada um dos três atos começa ironicamente: principia com os personagens prostrados em cena como se fosse uma foto de seu álbum de família. Momento em que o speaker narra (também em off), com entonação e ênfase feliz e empolgada, as belezas e os primores de cada um em particular e de cada um em família. A ironia do estilo enfático do narrador é primorosa! Vale conferir.

Com Álbum de Família, sua terceira peça, Nelson Rodrigues amargou e arrematou para sempre o título de maldito, já que, vindo de uma tradição iniciada maldita com A Mulher sem Pecado (1941) e Vestido de Noiva (1943) ele, neste Álbum de Família, a enfatiza porque, além desses detalhes mínimos listados acima, a peça ainda mostra incesto (de Jonas para sua filha Glória e de dona Senhorinha para seu filho Nonô e de Guilherme, filho do casal, para sua mãe dona Senhorinha dentre outros, sim, outros!), homossexualidade (entre Glória e uma sua amiga de internato), traições constantes e evidentes de Jonas com qualquer menina (a dos gritos em off) e ou mulher (tia Rute), desejos extraconjugais (de dona Senhorinha) etc.

Assim, é como acerta Luiz Arthur Nunes: Suas histórias lidam sempre com situações extremas e ações extraordinárias. Os personagens, seus agentes, são, portanto, necessariamente criaturas excepcionais, movidas por forças obscuras e avassaladoras, incapazes de comedimento ou concessão.

Nelson Rodrigues - Internet

Com tudo isso e por tudo isso, nosso mestre amargou ostracismo. Buscou construir uma obra nova, ousada e modernista, mas seu tempo conduziu a ele próprio e aos caminhos da dramaturgia nacional para outros lados, outras intenções, outro panorama. No fim dos anos 60, aparece Plínio Marcos e, durante os anos 70 (quando o país mergulhou no processo ditatorial radical), toda uma geração de autores mostrou sua rebeldia e revolução em obras contrárias ao reacionarismo da época. Adiante, Plínio Marcos inaugura o diálogo com as plateias jovens –em 1967 ele leva à cena Dois Perdidos Numa Noite Suja. Além disso e deles, Leilah Assumpção (Fala Baixo Senão Eu Grito), Consuelo de Castro (À Flor da Pele), Antônio Bivar (Cordélia Brasil), Mário Prata, Timochenco Wehbi, José Vicente de Paula e outros, dentre os quais até O Rei da Vela (1937, encenado em 1967) vem para sintetizar o progressismo ideológico demandado pela época que já não era mais como a de Nelson quando de seu Vestido de Noiva...

Observo ainda que, nas décadas posteriores, foi o cinema que abraçou a obra rodrigueana. Porém, encenada e levada às telas pela chanchada e logo pela pornochanchada, sua obra foi mal interpretada e mal aproveitada, relegando-lhe, de novo e como sempre errôneo, o título de tarado, obsessivo, depravado, desviado e tal. É, por isso, como disse e digo a partir do título deste texto, um anjo/autor mal interpretado. Fizeram de sua obra aquilo que viram nela, o que quiseram enxergar nela, sem se ocuparem ou sem entenderem sua real intenção e seu real objetivo.

Assinatura de Nelson Rodrigues - Internet
Foi Manuel Bandeira, sendo contemporâneo de Nelson Rodrigues, ainda lendo os originais (baita privilégio!) de Vestido de Noiva, naquele longínquo 1943, quem disse: Bom teatro o que sacode o público. Nelson Rodrigues sacode-o, e tem força nos pulsos. (...) Nelson Rodrigues é poeta. Talvez [Nelson] não faça, nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. Vestido de Noiva em outro meio consagraria um autor. Que será aqui? Se for bem escrita, consagrará... o público. 

E, se eu puder contar como seu público, dou-lhe tudo e todos os louros como meu apoio por menor que seja e que valha.

É só.
Fernando Medeiros é professor de Literatura.

Bibliografia:
Bravo! Junho de 2000 - Edição número 33 - Nelson Rodrigues. 
CASTRO, Ruy. O Anjo Pornográfico. São Paulo: Cia das Letras, 19922.
MAGALDI, Sábato. Panorama do Teatro Brasileiro. 5a. ed. São Paulo: Global, 2001.
MAGALDI, Sábato. Teatro da Obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004.
RODRIGUES, Nelson. Teatro CompletoRio de JaneiroNova Aguilar, 2003.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Uma análise possível (?) para a Vaca Profana de Caetano Veloso



Gal Costa e Caetano Veloso nos anos 1960
Desde que ouvi pela primeira vez a canção de Caetano Veloso Vaca Profana, digo, desde então, que é esta uma das músicas mais sensacionais que já ouvi na vida. É sensacional a bateria, a guitarra, o baixo, o piano! É sensacional a voz de Gal Costa nessa melodia pop-rock-mpb! E a letra-poema enigmática!

Me divirto, muito e deveras, quando alguém está com um violão e eu lhe peço, com certa insistência: Toca Vaca Profana, e o violeiro me olha com cara de: O que é isso, pelamordedeus?! 

Uma vez me perguntaram: Você que inventou isso?! Respondi: Quem me dera! Resposta essa que me autoriza a dizer, aqui e agora, que seria eu poeta de um poema só, mas feliz e genial, se fosse minha apenas e tão somente esta composição.


Capa do LP Profana de Gal Costa, 1984
O fato é que, está óbvio, não é. E Caetano Veloso escreveu um livro, de dois volumes, Letra Só (Cia das Letras: 2003), no qual lista letra por letra de suas canções num volume e, no outro, de algumas delas, ele vai dando pareceres, explicações, justificativas, etc, sobre como, por que, quando e para quê ou quem ele escreveu esta e ou aquela música. 

Confesso, ok, confesso que minha curiosidade maior com este livro era a Vaca Profana. E, lacrado ainda na livraria, não folheei a obra, mas, em casa, direto eu fui ao V de Vaca, Vaca Profana e, para minha surpresa, estava escrito nada além de: 

“Estava na Europa e, atendendo a um pedido de Gal, fiz essa canção de refrões mutantes que são difíceis de memorizar. Na verdade é também uma canção sobre Gal. Ou melhor: procura dialogar com a persona pública de Gal. Tem muitas sacações bacanas.” (VELOSO:2003). 

E nada além disso. Tudo bem, ele não é obrigado a revelar o que escreve e no que pensa ao escrever. Nem deve, porque o legal, o gostoso da Literatura é o leitor tirar suas conclusões. É o leitor entender as sacações bacanas. Porém, o livro vale muito pelas explicações de outros letras-poemas como, por exemplo, Araçá Azul, Trilhos Urbanos, O Quereres e, claro, apesar de tudo, Vaca Profana.

Tais sacações bacanas, algumas foram elucidadas, em 1984, no LP, Profana de Gal Costa, em seu encarte, no qual estão esclarecimentos como estes (ipsis literis):

_ (Napoli) PINO = Pino Daniele, cantor napolitano
_ “Soul” – rithm’n’blues
_ PI = Pi (pinho ou pinheiro em catalão, como “Pino” em italiano), Pi de lo Serra, cantor catalão, “Nova Canção”
_ PAU = Pau Riba, cantor catalão, único roqueiro da “Nova Canção”. Pau é Paulo em catalão
_ PUNKS/PICASSOS = os punks das ruas de Londres parecem quadros de Picasso 
_ “PURETAS” = “caretas”, nova gíria espanhola
_ “MOVIDA MADRILEÑA” = nova onda “new wave” de Madrid, que tem como lema (e nome de uma revista) “Madrid me mata”, daí “também te mata Barcelona”
_ GAUDI = arquiteto catalão, genial louco
_ “RAMBLAS” = passeio (e também calçada) em catalão, lugar de Barcelona onde toda gente vai beber e passear. Do verbo “rambar” = flanar, perambular
_ ORCHATA DE CHUFA = bebida feita com noz, toma-se na Catalunha
_ SI US PLAU = (quase só se diz “si’s plau”) = “por favor” em catalão


Foto de contracapa do LP Profana de Gal Costa, 1984
Então, desde a primeira vez em que a ouvi, lendo aqui, sondando ali, pensando acolá, ouvindo mais e sempre, aqui, ali e acolá a canção, conversando com quem a conhece, estudando símbolos, ícones e índices desse poema-enigma, cheguei a algumas conclusões, tão somente pessoais, que me levam a interpretá-la, entendê-la e processá-la assim (ou não!). Vejamos. Diz o eu lírico:

Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada

O poema começa com o eu lírico afirmando no presente do indicativo que respeita suas lágrimas, mas ainda mais sua risada. Ou seja, infere-se que ele sofre e chora sim de vez em quando, mas que, apesar disso, respeita ainda mais sua risada, o que nos prova o fato de que, apesar de às vezes sofrer, sua felicidade é ainda mais importante (como de fato deve ou tem que ser).

Nessa primeira estrofe, ao dizer, também no presente do indicativo, que inscreve na voz de uma mulher sagrada o dito de respeitar as lágrimas e ainda mais a risada, o eu lírico faz aqui uma argumentação de autoridade, já que ele transfere a uma mulher, diga-se, uma mulher sagrada, a autoria dos versos que deveriam, assim, abrir a canção entre aspas!

Em seguida, e logo em seguida, ao se referir à mulher, que é sagrada, ele entra com outro enigma: a vaca profana! Mulher Sagrada e Vaca Profana. Pra mim, não seria meramente casual o fato de os elementos Mulher Sagrada e Vaca Profana estarem justapostos, cara a cara, lado a lado, verso a verso, um ao lado do outro.

Para mim, e falo tão somente por mim, esta mulher sagrada é a vaca profana, num raciocínio que resulta de um processo silogístico. Assim:

_A mulher é sagrada porque exprime, do ponto de vista do eu lírico, palavras fortes.
_A mulher é a vaca porque ambos elementos estão dispostos lado a lado, em sentido de complementação entre eles.
_Vaca e mulher são seres comuns, mundanos.
_A vaca, na cultura indiana e em outras culturas do oriente, porém, é uma deusa, portanto sagrada.
_A mulher é um ser comum, mundano, mas fala coisas importantes, tornando-se sagrada, para o eu lírico.
_A vaca é um ser comum, mundano, animal, mas torna-se especialmente sagrada para alguns.
_Então, para o eu lírico, a mulher é sagrada e a vaca é profana.

E, além disso, a vaca que é a mulher, e que é sagrada, põe seus cornos pra fora e acima da manada. Ou seja, a mulher, animalizada, mas sagrada e importante, é responsável por se mostrar afora e acima da manada, com seus cornos, porque tem algo de diferente, algo de especial, saindo a frente e, provavelmente, comandando toda a manada. 

A simbologia da vaca, da manada e dos cornos, de acordo com o Dicionário de Símbolos (CHEVALIER:2012), nos revela de maneira bem interessante, bem peculiar o que se segue:

_VACA:
De um modo geral, a vaca, produtora de leite, é o símbolo da terra nutriz. Entre os egípcios antigos, a vaca é a fertilidade, a riqueza, a renovação, a mãe, a mãe celeste do sol; era a nutriz do soberano do Egito. É a essência da renovação e da esperança na sobrevivência. É associada à abundância entre os sumérios, para quem a lua era decorada com dois chifres de vaca. 

_MANADA:
Entre os sumérios, enquanto a vaca é representada pela lua (com chifres), a via láctea o é pela manada. O que se pode associar ao celestial e, assim, ao divino.

_CORNOS ou chifres: 
O chifre tem o sentido de eminência e de elevação. Seu simbolismo é o do poder. Os guerreiros de diversos países, principalmente os gauleses, usavam capacetes com chifres. O poder dos cornos, aliás, não é apenas de ordem temporal. Os chifres dos bovinos são o emblema da Magna Mater Divina (a grande mãe divina). Onde quer que eles apareçam, assinalam a presença da grande mãe da fertilidade, evocando os prestígios da força vital, da criação periódica, da vida inesgotável, da fecundidade. Vieram, em consequência, a simbolizar a majestade e os benefícios do poder real.


Via Láctea - Internet
Assim, associando tais símbolos numa possível leitura representativa ou numa possível imagem metafórica (talvez bem pessoal), percebe-se que a vaca, portanto, era e ainda é, para alguns, divina e elevada. O que ela dá ou produz, o leite, é símbolo de sua fertilidade e, assim, também de sua divindade. Seus cornos, como símbolo de elevação e superioridade, a vaca os colocando para fora e acima da manada, eleva-os ainda mais, eleva e engrandece ainda mais sua divindade, sua realeza (temporal e celestial) e sua sacralidade, por ser divina e representar tais elementos. E ainda estão pra fora e acima da manada. Acima.

Se a vaca vem associada à ideia da renovação, e a nossa vaca profana põe seus cornos pra fora e acima da manada, e se a manada é a via láctea, nesse contexto celestial e divino, de superação e de superioridade, a vaca então comanda a manada a partir da elevação de seus chifres, como referência e reverência, conduzindo e incentivando a manada a segui-la com confiança e certeza no caminho. Assim como as mães, em seu instinto materno fazem (ou seja, comandam), a vaca, que é a grande mãe divina (Magna Mater Divina), também o faz.



Caetano e seus cornos pra fora e acima da manada! Internet

Continua, genial, a canção:

Ê!
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a "movida Madrileña” 
Também te mata Barcelona
Napoli Pino, Pi, Pau Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte

O que temos na estrofe acima é um exemplo forte de cubismo, por conta dessas sobreposições de imagens. Aqui, buscando as elucidações do encarte do LP Profana, de Gal, percebemos a Movida Madrileña, que deve ser seguida pelo interlocutor, o que se nota pelo imperativo – segue (tu) –, é um estilo musical novo, àquela altura, 1984. A Movida Madrileña, que tem por lema Madrid Me Mata, insinua que Barcelona também deve matar. Matar de quê? Matar por quê? Como se tratava de algo novo, deve ser ou pode matar pela novidade que se trazia e começava naquela hora. Esse tal novo estilo musical talvez seja o leite bom que se derrama na cara do eu lírico.

Em seguida, a sobreposição de Napoli e Pino que é Pino Daniele, cantor napolitano; de Pi em catalão (que corresponde a Pino em italiano) e Pi, como se vê no encarte de Profana, é Pi de lo Serra, cantor catalão da Nova Canção, o tal estilo novo; de Pau, que é Pau Riba, que também é cantor da Nova Canção; e de Punks e Picassos é o exercício do cubismo, como ele mesmo, o autor, Caetano, associou em sua explicação anterior. 

Sobrepor imagens é tentar recriar e refazer seus sentidos, aparentemente desconexos, numa imagem única e talvez caótica, num evidente jogo e numa evidente brincadeira com as palavras.

O poeta, que é baiano, termina a estrofe, dando voz ao eu lírico, cantando Bahia onipresentemente Rio e belíssimo horizonte. Da maneira como ele canta o verso, no meu entendimento, quem é onipresente é a Bahia. Então, a onipresença de sua cidade é algo como se todos os símbolos sobrepostos, antes e acima, tudo isso, já fosse, de alguma forma, contemplado pela Bahia, sua terra. Por isso, nada lhe seria novidade. Como se sua terra já tivesse inventado um estilo novo, que devesse ser seguido e que matava (a alguns de raiva, porque era bom e novo. Matava porque devia ser seguido e matava porque, também e de certa forma, era proibido – o Tropicalismo?!), daí sua onipresença. 

Belíssimo horizonte, está claro, é referência à capital mineira, que, associada ao Rio, completariam a lista de lugares em que o eu lírico viu tudo o que viu primeiro na onipresente Bahia. E este horizonte que lhe mostra tudo isso é belo, como ele diz ao usar o belíssimo de maneira ambígua!

E, em tempo, se a vaca é simbolicamente divina, por metonímia – o todo pela parte –, suas tetas também o são, porque dão o alimento, a fertilidade e a fecundidade.

A canção continua, ainda mais incrível:


Capa do LP Totalmente Demais de Caetano Veloso, 1986


Ê! 

Vaca de divinas tetas

La leche buena toda en mi garganta

La mala leche para los "puretas"

Quero que pinte um amor Bethânia

Stevie Wonder, andaluz 

Como o que tive em Tel Aviv 

Perto do mar, longe da cruz 

Mas em composição cubista 

Meu mundo Thelonius Monk`s blues
A estrofe acima é cantada em espanhol nos três primeiros versos (excluindo-se a interjeição Ê!). Tal fato é o jogo, a brincadeira feita pelo poeta de, quando possível, falar de Barcelona, Cataluña, Andalucia, e de elementos espanhóis como, por exemplo, a Movida Madrileña ou o cubismo e Picasso, já que ele se encontrava na Europa, provavelmente na Espanha. É uma relação semântica perfeita, mas interrompida por ícones como Stevie Wonder e Bethânia – americano e brasileira, além de irmã do poeta, e ainda Tel Aviv.

Um amor Bethânia, ele diz. Eu, primeiro lia esse verso como se houvesse uma elipse de para: Um amor para Bethânia. Mas hoje, não desprezando tal leitura, também leio Bethânia nesse verso como um adjetivo. Um amor Bethânia, do tipo, à moda Bethânia, de acordo com a personalidade de Bethânia. Sabemos que, de fato, Maria Bethânia é intensa. Intensa em suas interpretações operísticas, em seus pensamentos e na defesa deles, em seus sentimentos, mesmo que discretos, mas intensa! Um amor intenso como Bethânia. Ou um amor intenso como os de Bethânia.

Stevie Wonder é cego. O termo andaluz, justaposto ao nome do cantor, vindo este verso depois de o eu lírico se referir ao amor Bethânia, suponho que o amor de Stevie Wonder pode ser pela luz, porque ela lhe falta, e por isso seja também um amor intenso. Ou, talvez, o amor seja cego. Mas há aqui mais e muitas simbologias. Sim, há.

E tal amor intenso, que deve pintar de acordo com o querer do eu lírico, é um novo e outro, mas parecido ou igual ao que ele já teve em Tel Aviv, num lugar perto do mar, que é imenso e, por isso, (o mar ou lugar) engole, traga e consome, e também longe da cruz, ou seja, sem culpa, sem pecado, sem dor, já que estava longe da cruz - um símbolo por excelência religioso.

Então, para terminar a estrofe, ele volta às composições cubistas, sobrepondo elementos, e, a meu ver, quando esse tal amor novo surgir, sem pecado e sem culpa, ele deve vir ao som do blues de Thelonius Monk, para, mais uma vez, conectar e dar sentido a uma costura de elementos aparentemente desconexos!

Observo que em Eu Sou Neguinha? e em O Estrangeiro, Caetano já havia se referido à cruz (trocando Luz por Cruz no fim do túnel) e a Stevie Wonder respectivamente. Observo também que existe uma ligação, inclusive verbalizada e cantada por ela mesma, entre o mar e Maria Bethânia.

Thelonius Monk - Internet
Completa-se, sensacional, a canção assim:

Ê!
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí!

Nessa estrofe o eu lírico se apresenta: é, a um tempo, tímido e espalhafatoso, como uma torre traçada por Gaudi, quem, como se sabe, é catalão (o que se associa ao idioma e a cultura espanhóis). O traçado de Gaudi pode ser associado aos traços citados em sua personalidade, espalhafatoso e tímido, de maneira também característica.


Gal Costa, anos 1970 - Internet
São Paulo, assim como Paris e Nova Iorque, é uma grande cidade do mundo. Tão grandes que podem ser associadas ao próprio mundo. Tudo e muita coisa acontece nessas grandes cidades. Aqui, tendo por interlocutores os caretas de Paris e de Nova Iorque, o eu lírico diz que sem mágoas, está tudo bem. Infere-se, assim, que em algum momento, para ele, Nova Iorque e Paris, por serem vistas como são, foram cidades imaginadas ou idealizadas por ele como sem a existência de caretas, cidades modernas e tal, mas quando, ao conhecê-las, percebeu que também elas têm caretas, como em qualquer lugar do mundo e, embora as aceite e as entenda, já não guarda mais mágoas disso. 

Nessa estrofe, também, volta ao tema do amor, dessa vez perdido em São Paulo, mas pelo qual segue em sua busca. Como se diz sem mágoas para os caretas de Paris e de Nova Iorque, também talvez esteja sem mágoa contra os de São Paulo e sem mágoas contra o amor perdido, daí a ideia de se seguir em nova busca.

E segue, irônica, a poesia:

Ê!
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal” 
No mais, as "ramblas" do planeta
“Orchata de chufa, si us plau”

Na estrofe anterior o eu lírico se apresentou; nessa, ele está irônico, sutilmente irônico e nos avisa, nos alerta: Mas (conjunção adversativa) que ele também sabe ser careta. Assim, apesar de se ver e de se posicionar em lugar privilegiado, de dentro do qual, além de alertar, avisar, mostrar as coisas vistas na Bahia e em outros lugares, tais como os sentimentos e os amores perdidos, ele também discursa, alertando que de perto ninguém é normal. Nem ele.

Porém, assim como a vaca, elevando seus cornos, se torna sagrada e divina, e ele, inscrevendo suas palavras na voz daquela mulher que é a vaca e que é sagrada, o eu lírico também se eleva. Mas de uma posição superior e privilegiada, e só, e somente só, depois de dizer que ninguém é normal, o poeta diz também saber ser careta, ou seja, justificando-se, apesar de se elevar (ou também porque se eleva) ele se mostra, até ele, passível de anormalidade.

Aí, pra mudar de assunto e não falar muito, a vida, segundo ele, segue em linha reta, essa vida que é “meu bem, meu mal” – que é o título de outro poema do autor – para talvez dizer que a vida é assim mesmo, ou seja, é contraditória, é antitética e paradoxal, posto que seja bem e mal, normal e anormal.

E, para evitar um assunto pra lá de Marrakech, finaliza com um No mais, as ramblas do planeta. Ou seja, os caminhos do planeta, quaisquer que sejam, vão dar no mesmo lugar, porque o eu lírico flana, assim como João do Rio, e observa em São Paulo, Bahia, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Barcelona, Londres as mesmas coisas, os mesmos caretas, os mesmos amores perdidos (ou não) porque, por metonímia, se São Paulo é o mundo todo, todo o mundo são essas cidades também.

Augusto dos Anjos, quando aconselha: Toma um fósforo, acende teu cigarro, dizia irônico que não há nada o que fazer contra a falsidade, contra o beijo que é a véspera do escarro, acendendo assim seu cigarrinho para, então, concluindo em êxtase vitorioso, relaxar e contemplar a vida, impotente diante dela. Os caminhos do planeta, portanto, dão no mesmo lugar.

Aqui, finalizando no mesmo tom de ironia do poeta paraibano, o eu lírico pede, por favor, uma Orchata de Chufa, sinalizando, sugerindo em tom de grande descoberta - daí a ironia -, não haver nada que se possa fazer contra a caretice, contra a vida que é, a um tempo, bem e mal, degustando então de sua bebida espanhola. Assim, se a caretice é o que é, derramemos então chuva do mesmo bom – que sabemos que é bom – nas almas dos caretas para, quem sabe, possamos converter alguém da caretice, tirando-os da ignorância!

E então, finaliza, genial:

Ê!
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...

A última estrofe volta antitética ao começo do poema, chamando-a Deusa. Mas a vaca não era profana? Agora, finalizando tudo, ele se refere a ela como deusa? Então, a vaca é profana e é deusa, uma deusa profana porque, talvez ela, assim como o amor de Tel Aviv, esteja longe da cruz, longe da culpa ou também longe de rotulações clássicas, canônicas, do que é sagrado ou profano, amor ou amor intenso e do que é bom ou é ruim!

Talvez por isso seja ainda interessante observar os pares (deixados de fora da análise das estrofes acima), que são parte do refrão, e que vão, em progressão ou em gradação (desculpe-me pelo eco inevitável!), estrofe a estrofe, dando um sentido especial ao poema:

1. (segunda estrofe)
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Nessa estrofe, só no eu lírico o que é bom (na minha cara), para os caretas o que é mau. Tudo separado, como se o eu lírico, entendendo o que é bom, quisesse e deixasse apenas para ele o que tem valor e para os caretas, porque esses não entendem, ficasse aquilo que é mau, porque é o que lhes cabe. Assim, talvez, o eu lírico seguisse o bom, ou seja, a Movida Madrileña, e, por serem caretas, esses ficam de fora, sem segui-la, porque não querem e ou não entendem.

2. (terceira estrofe)
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"

Nessa, em espanhol, igual: só no eu lírico o que é bom (en mi garganta), para os caretas (puretas) o que é mau. Legal observar, também, que, em espanhol, La mala leche é uma expressão idiomática, que, como expressão idiomática é difícil de traduzir, quer (talvez) dizer mau humor ou má intenção. Derramar o mau humor sobre os caretas, o que, aliás, lhes seja peculiar.

3. (quarta estrofe)
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas


Meu verso favorito dessa canção é Teu bom só para o oco, minha falta e, que apesar disso, é o mais enigmático e de difícil entendimento para mim. Mas, o percebo assim: Teu é pronome possessivo de segunda pessoa, então o interlocutor do eu lírico é a vaca. O bom da vaca, que deve ser o leite bom, apenas para (preencher) o oco, o que então lhe preenche o vazio dele, ou seja, a sua falta ou que lhe falta é preenchido de coisa boa, suprindo-o.

Então, uma vez preenchido o vazio do eu lírico, porque ele fartou-se do que é bom, o que sobra do leite bom da vaca deve inundar a alma dos caretas (repare: inundar!), para que, pelo excesso do leite bom, também os caretas se preencham de coisa boa.


Internet
4. (quinta estrofe) 
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas


Nessa estrofe, todo o leite, bom ou mau, na alma do eu lírico. Para os caretas, nada do que é mau, ou seja, para os caretas o leite bom. Aquele leite que na estrofe anterior INUNDA as almas deles. A alma é algo mais profundo e complexo.

5. (sexta e última estrofe)

Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas


Nessa estrofe final, não mais todo o leite, apenas gotas de leite bom na cara dele. A cara é algo mais superficial. Para os caretas, agora e por fim, chuva do mesmo bom sobre eles. Ou seja, a inundação passou e a chuva, mesmo menor em intensidade, ainda encharca os caretas do que é bom e, de qualquer forma, ao eu lírico, dividindo o pouco que é para ele (apenas gotas), para que sempre sóbre mais para os caretas porque, de fato e de verdade, é para os caretas mesmo que precisamos, para abrir-lhe as mentes, mostrar e ceder o que é bom!

Ainda, e quase no fim, esse poema, como todo poema, pode ser lido de várias maneiras. Uma outra leitura possível pode ser feita com o entendimento do deboche porque, como numa resposta ao mundo das coisas sagradas, se tudo é sagrado, então ele (o poema) é profano sim. Para o eu lírico, ser profano é maior que ser sagrado porque pode estar levantando questões como: Quem e o quê é sagrado? Para quem o é? Pôr os cornos acima e pra fora da manada pode ser rebeldia de uma vaca (sagrada ou profana?) que se recusa a seguir a manada, que se recusa a seguir a marcha instituída das coisas do dia a dia e da vida como são.

Porém, para finalizar e, depois de tudo, o mais interessante é que, ao longo de todo o poema, apesar de ser intitulado Vaca Profana, a Vaca é sempre sagrada ou divina. Observe! ;-)

E, se segundo ele próprio, Caetano, a Vaca Profana é: "Na verdade também uma canção sobre Gal", será que a tal vaca profana, que é uma mulher sagrada, seria a própria Gal?


Caetano e Gal, 1968 - Internet
_ Referência bibliográfica:

.COSTA, Gal. Profana. Faixa n° 1. Rio de Janeiro: Sony Music, [1984] 2012.
.DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. 26ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
.DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001.
.DICIONÁRIO HOUAISS ILUSTRADO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Instituto Antônio Houaiss/ Instituto Cultural Cravo Albin. CRAVO ALBIN, Ricardo (Supervisor). RJ: Paracatu, 2006.
.ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: POPULAR, ERUDITA E FOLCLÓRICA. 3a. ed. 1a. reimpressão. São Paulo: Art Editora, 2003.
.VELOSO, Caetano. A Poesia de Caetano Veloso: Letra Só e Sobre as Letras. Cia das Letras, 2003.
.VELOSO, Caetano. Faixa n° 1. Totalmente Demais. Universal Music, [1986], 2011. 


Fernando Medeiros é professor de Literatura. 

Prestou-nos gentilmente - em conversas agradáveis e intermináveis - "consultoria interpretativa" a professora de Literatura Poliana Faria.