quinta-feira, 17 de abril de 2014

Uma análise possível (?) para a Vaca Profana de Caetano Veloso



Gal Costa e Caetano Veloso nos anos 1960
Desde que ouvi pela primeira vez a canção de Caetano Veloso Vaca Profana, digo, desde então, que é esta uma das músicas mais sensacionais que já ouvi na vida. É sensacional a bateria, a guitarra, o baixo, o piano! É sensacional a voz de Gal Costa nessa melodia pop-rock-mpb! E a letra-poema enigmática!

Me divirto, muito e deveras, quando alguém está com um violão e eu lhe peço, com certa insistência: Toca Vaca Profana, e o violeiro me olha com cara de: O que é isso, pelamordedeus?! 

Uma vez me perguntaram: Você que inventou isso?! Respondi: Quem me dera! Resposta essa que me autoriza a dizer, aqui e agora, que seria eu poeta de um poema só, mas feliz e genial, se fosse minha apenas e tão somente esta composição.


Capa do LP Profana de Gal Costa, 1984
O fato é que, está óbvio, não é. E Caetano Veloso escreveu um livro, de dois volumes, Letra Só (Cia das Letras: 2003), no qual lista letra por letra de suas canções num volume e, no outro, de algumas delas, ele vai dando pareceres, explicações, justificativas, etc, sobre como, por que, quando e para quê ou quem ele escreveu esta e ou aquela música. 

Confesso, ok, confesso que minha curiosidade maior com este livro era a Vaca Profana. E, lacrado ainda na livraria, não folheei a obra, mas, em casa, direto eu fui ao V de Vaca, Vaca Profana e, para minha surpresa, estava escrito nada além de: 

“Estava na Europa e, atendendo a um pedido de Gal, fiz essa canção de refrões mutantes que são difíceis de memorizar. Na verdade é também uma canção sobre Gal. Ou melhor: procura dialogar com a persona pública de Gal. Tem muitas sacações bacanas.” (VELOSO:2003). 

E nada além disso. Tudo bem, ele não é obrigado a revelar o que escreve e no que pensa ao escrever. Nem deve, porque o legal, o gostoso da Literatura é o leitor tirar suas conclusões. É o leitor entender as sacações bacanas. Porém, o livro vale muito pelas explicações de outros letras-poemas como, por exemplo, Araçá Azul, Trilhos Urbanos, O Quereres e, claro, apesar de tudo, Vaca Profana.

Tais sacações bacanas, algumas foram elucidadas, em 1984, no LP, Profana de Gal Costa, em seu encarte, no qual estão esclarecimentos como estes (ipsis literis):

_ (Napoli) PINO = Pino Daniele, cantor napolitano
_ “Soul” – rithm’n’blues
_ PI = Pi (pinho ou pinheiro em catalão, como “Pino” em italiano), Pi de lo Serra, cantor catalão, “Nova Canção”
_ PAU = Pau Riba, cantor catalão, único roqueiro da “Nova Canção”. Pau é Paulo em catalão
_ PUNKS/PICASSOS = os punks das ruas de Londres parecem quadros de Picasso 
_ “PURETAS” = “caretas”, nova gíria espanhola
_ “MOVIDA MADRILEÑA” = nova onda “new wave” de Madrid, que tem como lema (e nome de uma revista) “Madrid me mata”, daí “também te mata Barcelona”
_ GAUDI = arquiteto catalão, genial louco
_ “RAMBLAS” = passeio (e também calçada) em catalão, lugar de Barcelona onde toda gente vai beber e passear. Do verbo “rambar” = flanar, perambular
_ ORCHATA DE CHUFA = bebida feita com noz, toma-se na Catalunha
_ SI US PLAU = (quase só se diz “si’s plau”) = “por favor” em catalão


Foto de contracapa do LP Profana de Gal Costa, 1984
Então, desde a primeira vez em que a ouvi, lendo aqui, sondando ali, pensando acolá, ouvindo mais e sempre, aqui, ali e acolá a canção, conversando com quem a conhece, estudando símbolos, ícones e índices desse poema-enigma, cheguei a algumas conclusões, tão somente pessoais, que me levam a interpretá-la, entendê-la e processá-la assim (ou não!). Vejamos. Diz o eu lírico:

Respeito muito minhas lágrimas
Mas ainda mais minha risada
Inscrevo, assim, minhas palavras
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada

O poema começa com o eu lírico afirmando no presente do indicativo que respeita suas lágrimas, mas ainda mais sua risada. Ou seja, infere-se que ele sofre e chora sim de vez em quando, mas que, apesar disso, respeita ainda mais sua risada, o que nos prova o fato de que, apesar de às vezes sofrer, sua felicidade é ainda mais importante (como de fato deve ou tem que ser).

Nessa primeira estrofe, ao dizer, também no presente do indicativo, que inscreve na voz de uma mulher sagrada o dito de respeitar as lágrimas e ainda mais a risada, o eu lírico faz aqui uma argumentação de autoridade, já que ele transfere a uma mulher, diga-se, uma mulher sagrada, a autoria dos versos que deveriam, assim, abrir a canção entre aspas!

Em seguida, e logo em seguida, ao se referir à mulher, que é sagrada, ele entra com outro enigma: a vaca profana! Mulher Sagrada e Vaca Profana. Pra mim, não seria meramente casual o fato de os elementos Mulher Sagrada e Vaca Profana estarem justapostos, cara a cara, lado a lado, verso a verso, um ao lado do outro.

Para mim, e falo tão somente por mim, esta mulher sagrada é a vaca profana, num raciocínio que resulta de um processo silogístico. Assim:

_A mulher é sagrada porque exprime, do ponto de vista do eu lírico, palavras fortes.
_A mulher é a vaca porque ambos elementos estão dispostos lado a lado, em sentido de complementação entre eles.
_Vaca e mulher são seres comuns, mundanos.
_A vaca, na cultura indiana e em outras culturas do oriente, porém, é uma deusa, portanto sagrada.
_A mulher é um ser comum, mundano, mas fala coisas importantes, tornando-se sagrada, para o eu lírico.
_A vaca é um ser comum, mundano, animal, mas torna-se especialmente sagrada para alguns.
_Então, para o eu lírico, a mulher é sagrada e a vaca é profana.

E, além disso, a vaca que é a mulher, e que é sagrada, põe seus cornos pra fora e acima da manada. Ou seja, a mulher, animalizada, mas sagrada e importante, é responsável por se mostrar afora e acima da manada, com seus cornos, porque tem algo de diferente, algo de especial, saindo a frente e, provavelmente, comandando toda a manada. 

A simbologia da vaca, da manada e dos cornos, de acordo com o Dicionário de Símbolos (CHEVALIER:2012), nos revela de maneira bem interessante, bem peculiar o que se segue:

_VACA:
De um modo geral, a vaca, produtora de leite, é o símbolo da terra nutriz. Entre os egípcios antigos, a vaca é a fertilidade, a riqueza, a renovação, a mãe, a mãe celeste do sol; era a nutriz do soberano do Egito. É a essência da renovação e da esperança na sobrevivência. É associada à abundância entre os sumérios, para quem a lua era decorada com dois chifres de vaca. 

_MANADA:
Entre os sumérios, enquanto a vaca é representada pela lua (com chifres), a via láctea o é pela manada. O que se pode associar ao celestial e, assim, ao divino.

_CORNOS ou chifres: 
O chifre tem o sentido de eminência e de elevação. Seu simbolismo é o do poder. Os guerreiros de diversos países, principalmente os gauleses, usavam capacetes com chifres. O poder dos cornos, aliás, não é apenas de ordem temporal. Os chifres dos bovinos são o emblema da Magna Mater Divina (a grande mãe divina). Onde quer que eles apareçam, assinalam a presença da grande mãe da fertilidade, evocando os prestígios da força vital, da criação periódica, da vida inesgotável, da fecundidade. Vieram, em consequência, a simbolizar a majestade e os benefícios do poder real.


Via Láctea - Internet
Assim, associando tais símbolos numa possível leitura representativa ou numa possível imagem metafórica (talvez bem pessoal), percebe-se que a vaca, portanto, era e ainda é, para alguns, divina e elevada. O que ela dá ou produz, o leite, é símbolo de sua fertilidade e, assim, também de sua divindade. Seus cornos, como símbolo de elevação e superioridade, a vaca os colocando para fora e acima da manada, eleva-os ainda mais, eleva e engrandece ainda mais sua divindade, sua realeza (temporal e celestial) e sua sacralidade, por ser divina e representar tais elementos. E ainda estão pra fora e acima da manada. Acima.

Se a vaca vem associada à ideia da renovação, e a nossa vaca profana põe seus cornos pra fora e acima da manada, e se a manada é a via láctea, nesse contexto celestial e divino, de superação e de superioridade, a vaca então comanda a manada a partir da elevação de seus chifres, como referência e reverência, conduzindo e incentivando a manada a segui-la com confiança e certeza no caminho. Assim como as mães, em seu instinto materno fazem (ou seja, comandam), a vaca, que é a grande mãe divina (Magna Mater Divina), também o faz.



Caetano e seus cornos pra fora e acima da manada! Internet

Continua, genial, a canção:

Ê!
Dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a "movida Madrileña” 
Também te mata Barcelona
Napoli Pino, Pi, Pau Punks
Picassos movem-se por Londres
Bahia onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte

O que temos na estrofe acima é um exemplo forte de cubismo, por conta dessas sobreposições de imagens. Aqui, buscando as elucidações do encarte do LP Profana, de Gal, percebemos a Movida Madrileña, que deve ser seguida pelo interlocutor, o que se nota pelo imperativo – segue (tu) –, é um estilo musical novo, àquela altura, 1984. A Movida Madrileña, que tem por lema Madrid Me Mata, insinua que Barcelona também deve matar. Matar de quê? Matar por quê? Como se tratava de algo novo, deve ser ou pode matar pela novidade que se trazia e começava naquela hora. Esse tal novo estilo musical talvez seja o leite bom que se derrama na cara do eu lírico.

Em seguida, a sobreposição de Napoli e Pino que é Pino Daniele, cantor napolitano; de Pi em catalão (que corresponde a Pino em italiano) e Pi, como se vê no encarte de Profana, é Pi de lo Serra, cantor catalão da Nova Canção, o tal estilo novo; de Pau, que é Pau Riba, que também é cantor da Nova Canção; e de Punks e Picassos é o exercício do cubismo, como ele mesmo, o autor, Caetano, associou em sua explicação anterior. 

Sobrepor imagens é tentar recriar e refazer seus sentidos, aparentemente desconexos, numa imagem única e talvez caótica, num evidente jogo e numa evidente brincadeira com as palavras.

O poeta, que é baiano, termina a estrofe, dando voz ao eu lírico, cantando Bahia onipresentemente Rio e belíssimo horizonte. Da maneira como ele canta o verso, no meu entendimento, quem é onipresente é a Bahia. Então, a onipresença de sua cidade é algo como se todos os símbolos sobrepostos, antes e acima, tudo isso, já fosse, de alguma forma, contemplado pela Bahia, sua terra. Por isso, nada lhe seria novidade. Como se sua terra já tivesse inventado um estilo novo, que devesse ser seguido e que matava (a alguns de raiva, porque era bom e novo. Matava porque devia ser seguido e matava porque, também e de certa forma, era proibido – o Tropicalismo?!), daí sua onipresença. 

Belíssimo horizonte, está claro, é referência à capital mineira, que, associada ao Rio, completariam a lista de lugares em que o eu lírico viu tudo o que viu primeiro na onipresente Bahia. E este horizonte que lhe mostra tudo isso é belo, como ele diz ao usar o belíssimo de maneira ambígua!

E, em tempo, se a vaca é simbolicamente divina, por metonímia – o todo pela parte –, suas tetas também o são, porque dão o alimento, a fertilidade e a fecundidade.

A canção continua, ainda mais incrível:


Capa do LP Totalmente Demais de Caetano Veloso, 1986


Ê! 

Vaca de divinas tetas

La leche buena toda en mi garganta

La mala leche para los "puretas"

Quero que pinte um amor Bethânia

Stevie Wonder, andaluz 

Como o que tive em Tel Aviv 

Perto do mar, longe da cruz 

Mas em composição cubista 

Meu mundo Thelonius Monk`s blues
A estrofe acima é cantada em espanhol nos três primeiros versos (excluindo-se a interjeição Ê!). Tal fato é o jogo, a brincadeira feita pelo poeta de, quando possível, falar de Barcelona, Cataluña, Andalucia, e de elementos espanhóis como, por exemplo, a Movida Madrileña ou o cubismo e Picasso, já que ele se encontrava na Europa, provavelmente na Espanha. É uma relação semântica perfeita, mas interrompida por ícones como Stevie Wonder e Bethânia – americano e brasileira, além de irmã do poeta, e ainda Tel Aviv.

Um amor Bethânia, ele diz. Eu, primeiro lia esse verso como se houvesse uma elipse de para: Um amor para Bethânia. Mas hoje, não desprezando tal leitura, também leio Bethânia nesse verso como um adjetivo. Um amor Bethânia, do tipo, à moda Bethânia, de acordo com a personalidade de Bethânia. Sabemos que, de fato, Maria Bethânia é intensa. Intensa em suas interpretações operísticas, em seus pensamentos e na defesa deles, em seus sentimentos, mesmo que discretos, mas intensa! Um amor intenso como Bethânia. Ou um amor intenso como os de Bethânia.

Stevie Wonder é cego. O termo andaluz, justaposto ao nome do cantor, vindo este verso depois de o eu lírico se referir ao amor Bethânia, suponho que o amor de Stevie Wonder pode ser pela luz, porque ela lhe falta, e por isso seja também um amor intenso. Ou, talvez, o amor seja cego. Mas há aqui mais e muitas simbologias. Sim, há.

E tal amor intenso, que deve pintar de acordo com o querer do eu lírico, é um novo e outro, mas parecido ou igual ao que ele já teve em Tel Aviv, num lugar perto do mar, que é imenso e, por isso, (o mar ou lugar) engole, traga e consome, e também longe da cruz, ou seja, sem culpa, sem pecado, sem dor, já que estava longe da cruz - um símbolo por excelência religioso.

Então, para terminar a estrofe, ele volta às composições cubistas, sobrepondo elementos, e, a meu ver, quando esse tal amor novo surgir, sem pecado e sem culpa, ele deve vir ao som do blues de Thelonius Monk, para, mais uma vez, conectar e dar sentido a uma costura de elementos aparentemente desconexos!

Observo que em Eu Sou Neguinha? e em O Estrangeiro, Caetano já havia se referido à cruz (trocando Luz por Cruz no fim do túnel) e a Stevie Wonder respectivamente. Observo também que existe uma ligação, inclusive verbalizada e cantada por ela mesma, entre o mar e Maria Bethânia.

Thelonius Monk - Internet
Completa-se, sensacional, a canção assim:

Ê!
Vaca das divinas tetas
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo, um grande amor perdi
Caretas de Paris e New York
Sem mágoas, estamos aí!

Nessa estrofe o eu lírico se apresenta: é, a um tempo, tímido e espalhafatoso, como uma torre traçada por Gaudi, quem, como se sabe, é catalão (o que se associa ao idioma e a cultura espanhóis). O traçado de Gaudi pode ser associado aos traços citados em sua personalidade, espalhafatoso e tímido, de maneira também característica.


Gal Costa, anos 1970 - Internet
São Paulo, assim como Paris e Nova Iorque, é uma grande cidade do mundo. Tão grandes que podem ser associadas ao próprio mundo. Tudo e muita coisa acontece nessas grandes cidades. Aqui, tendo por interlocutores os caretas de Paris e de Nova Iorque, o eu lírico diz que sem mágoas, está tudo bem. Infere-se, assim, que em algum momento, para ele, Nova Iorque e Paris, por serem vistas como são, foram cidades imaginadas ou idealizadas por ele como sem a existência de caretas, cidades modernas e tal, mas quando, ao conhecê-las, percebeu que também elas têm caretas, como em qualquer lugar do mundo e, embora as aceite e as entenda, já não guarda mais mágoas disso. 

Nessa estrofe, também, volta ao tema do amor, dessa vez perdido em São Paulo, mas pelo qual segue em sua busca. Como se diz sem mágoas para os caretas de Paris e de Nova Iorque, também talvez esteja sem mágoa contra os de São Paulo e sem mágoas contra o amor perdido, daí a ideia de se seguir em nova busca.

E segue, irônica, a poesia:

Ê!
Dona das divinas tetas
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas
Mas eu também sei ser careta
De perto, ninguém é normal
Às vezes, segue em linha reta
A vida, que é "meu bem, meu mal” 
No mais, as "ramblas" do planeta
“Orchata de chufa, si us plau”

Na estrofe anterior o eu lírico se apresentou; nessa, ele está irônico, sutilmente irônico e nos avisa, nos alerta: Mas (conjunção adversativa) que ele também sabe ser careta. Assim, apesar de se ver e de se posicionar em lugar privilegiado, de dentro do qual, além de alertar, avisar, mostrar as coisas vistas na Bahia e em outros lugares, tais como os sentimentos e os amores perdidos, ele também discursa, alertando que de perto ninguém é normal. Nem ele.

Porém, assim como a vaca, elevando seus cornos, se torna sagrada e divina, e ele, inscrevendo suas palavras na voz daquela mulher que é a vaca e que é sagrada, o eu lírico também se eleva. Mas de uma posição superior e privilegiada, e só, e somente só, depois de dizer que ninguém é normal, o poeta diz também saber ser careta, ou seja, justificando-se, apesar de se elevar (ou também porque se eleva) ele se mostra, até ele, passível de anormalidade.

Aí, pra mudar de assunto e não falar muito, a vida, segundo ele, segue em linha reta, essa vida que é “meu bem, meu mal” – que é o título de outro poema do autor – para talvez dizer que a vida é assim mesmo, ou seja, é contraditória, é antitética e paradoxal, posto que seja bem e mal, normal e anormal.

E, para evitar um assunto pra lá de Marrakech, finaliza com um No mais, as ramblas do planeta. Ou seja, os caminhos do planeta, quaisquer que sejam, vão dar no mesmo lugar, porque o eu lírico flana, assim como João do Rio, e observa em São Paulo, Bahia, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Barcelona, Londres as mesmas coisas, os mesmos caretas, os mesmos amores perdidos (ou não) porque, por metonímia, se São Paulo é o mundo todo, todo o mundo são essas cidades também.

Augusto dos Anjos, quando aconselha: Toma um fósforo, acende teu cigarro, dizia irônico que não há nada o que fazer contra a falsidade, contra o beijo que é a véspera do escarro, acendendo assim seu cigarrinho para, então, concluindo em êxtase vitorioso, relaxar e contemplar a vida, impotente diante dela. Os caminhos do planeta, portanto, dão no mesmo lugar.

Aqui, finalizando no mesmo tom de ironia do poeta paraibano, o eu lírico pede, por favor, uma Orchata de Chufa, sinalizando, sugerindo em tom de grande descoberta - daí a ironia -, não haver nada que se possa fazer contra a caretice, contra a vida que é, a um tempo, bem e mal, degustando então de sua bebida espanhola. Assim, se a caretice é o que é, derramemos então chuva do mesmo bom – que sabemos que é bom – nas almas dos caretas para, quem sabe, possamos converter alguém da caretice, tirando-os da ignorância!

E então, finaliza, genial:

Ê!
Deusa de assombrosas tetas
Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas...

A última estrofe volta antitética ao começo do poema, chamando-a Deusa. Mas a vaca não era profana? Agora, finalizando tudo, ele se refere a ela como deusa? Então, a vaca é profana e é deusa, uma deusa profana porque, talvez ela, assim como o amor de Tel Aviv, esteja longe da cruz, longe da culpa ou também longe de rotulações clássicas, canônicas, do que é sagrado ou profano, amor ou amor intenso e do que é bom ou é ruim!

Talvez por isso seja ainda interessante observar os pares (deixados de fora da análise das estrofes acima), que são parte do refrão, e que vão, em progressão ou em gradação (desculpe-me pelo eco inevitável!), estrofe a estrofe, dando um sentido especial ao poema:

1. (segunda estrofe)
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas

Nessa estrofe, só no eu lírico o que é bom (na minha cara), para os caretas o que é mau. Tudo separado, como se o eu lírico, entendendo o que é bom, quisesse e deixasse apenas para ele o que tem valor e para os caretas, porque esses não entendem, ficasse aquilo que é mau, porque é o que lhes cabe. Assim, talvez, o eu lírico seguisse o bom, ou seja, a Movida Madrileña, e, por serem caretas, esses ficam de fora, sem segui-la, porque não querem e ou não entendem.

2. (terceira estrofe)
La leche buena toda en mi garganta
La mala leche para los "puretas"

Nessa, em espanhol, igual: só no eu lírico o que é bom (en mi garganta), para os caretas (puretas) o que é mau. Legal observar, também, que, em espanhol, La mala leche é uma expressão idiomática, que, como expressão idiomática é difícil de traduzir, quer (talvez) dizer mau humor ou má intenção. Derramar o mau humor sobre os caretas, o que, aliás, lhes seja peculiar.

3. (quarta estrofe)
Teu bom só para o oco, minha falta
E o resto inunde as almas dos caretas


Meu verso favorito dessa canção é Teu bom só para o oco, minha falta e, que apesar disso, é o mais enigmático e de difícil entendimento para mim. Mas, o percebo assim: Teu é pronome possessivo de segunda pessoa, então o interlocutor do eu lírico é a vaca. O bom da vaca, que deve ser o leite bom, apenas para (preencher) o oco, o que então lhe preenche o vazio dele, ou seja, a sua falta ou que lhe falta é preenchido de coisa boa, suprindo-o.

Então, uma vez preenchido o vazio do eu lírico, porque ele fartou-se do que é bom, o que sobra do leite bom da vaca deve inundar a alma dos caretas (repare: inundar!), para que, pelo excesso do leite bom, também os caretas se preencham de coisa boa.


Internet
4. (quinta estrofe) 
Quero teu leite todo em minha alma
Nada de leite mau para os caretas


Nessa estrofe, todo o leite, bom ou mau, na alma do eu lírico. Para os caretas, nada do que é mau, ou seja, para os caretas o leite bom. Aquele leite que na estrofe anterior INUNDA as almas deles. A alma é algo mais profundo e complexo.

5. (sexta e última estrofe)

Gotas de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas


Nessa estrofe final, não mais todo o leite, apenas gotas de leite bom na cara dele. A cara é algo mais superficial. Para os caretas, agora e por fim, chuva do mesmo bom sobre eles. Ou seja, a inundação passou e a chuva, mesmo menor em intensidade, ainda encharca os caretas do que é bom e, de qualquer forma, ao eu lírico, dividindo o pouco que é para ele (apenas gotas), para que sempre sóbre mais para os caretas porque, de fato e de verdade, é para os caretas mesmo que precisamos, para abrir-lhe as mentes, mostrar e ceder o que é bom!

Ainda, e quase no fim, esse poema, como todo poema, pode ser lido de várias maneiras. Uma outra leitura possível pode ser feita com o entendimento do deboche porque, como numa resposta ao mundo das coisas sagradas, se tudo é sagrado, então ele (o poema) é profano sim. Para o eu lírico, ser profano é maior que ser sagrado porque pode estar levantando questões como: Quem e o quê é sagrado? Para quem o é? Pôr os cornos acima e pra fora da manada pode ser rebeldia de uma vaca (sagrada ou profana?) que se recusa a seguir a manada, que se recusa a seguir a marcha instituída das coisas do dia a dia e da vida como são.

Porém, para finalizar e, depois de tudo, o mais interessante é que, ao longo de todo o poema, apesar de ser intitulado Vaca Profana, a Vaca é sempre sagrada ou divina. Observe! ;-)

E, se segundo ele próprio, Caetano, a Vaca Profana é: "Na verdade também uma canção sobre Gal", será que a tal vaca profana, que é uma mulher sagrada, seria a própria Gal?


Caetano e Gal, 1968 - Internet
_ Referência bibliográfica:

.COSTA, Gal. Profana. Faixa n° 1. Rio de Janeiro: Sony Music, [1984] 2012.
.DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS: Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. 26ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2012.
.DICIONÁRIO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA. Objetiva: Rio de Janeiro, 2001.
.DICIONÁRIO HOUAISS ILUSTRADO DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA. Instituto Antônio Houaiss/ Instituto Cultural Cravo Albin. CRAVO ALBIN, Ricardo (Supervisor). RJ: Paracatu, 2006.
.ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: POPULAR, ERUDITA E FOLCLÓRICA. 3a. ed. 1a. reimpressão. São Paulo: Art Editora, 2003.
.VELOSO, Caetano. A Poesia de Caetano Veloso: Letra Só e Sobre as Letras. Cia das Letras, 2003.
.VELOSO, Caetano. Faixa n° 1. Totalmente Demais. Universal Music, [1986], 2011. 


Fernando Medeiros é professor de Literatura. 

Prestou-nos gentilmente - em conversas agradáveis e intermináveis - "consultoria interpretativa" a professora de Literatura Poliana Faria.




segunda-feira, 7 de abril de 2014

Tropicália ou o Movimento Organizado


Beatriz Milhazes, O Mágico

Há muito tempo venho me cobrando, e meus alunos também, um texto sobre a Tropicália.

Prefiro chamar Tropicália a chamar Tropicalismo. Tropicalismo me parece mais formal e eles, os tropicalistas, não o eram. Tropicalismo parece coisa científica e como aqui não estou fazendo ciência, senão extravasando minhas interpretações pessoais sobre este movimento organizado, na música, por Caetano Veloso, meu ídolo maior, por Gilberto Gil, Os Mutantes (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Batista), Tom Zé, Gal Costa, Nara Leão, Torquato Neto e Rogério Duprat. Os mais formais e científicos, então, chamem-no Tropicalismo.



Capa do LP "Tropicália Ou Panis Et Circensis", 1968
Minha amiga Poli diz que sou um Veloso que dona Canô jogou no lixo e a quem minha mãe pegou para cuidar. Exageros a parte, tudo isso pra enfatizar minha constante conversa sobre o tema: nem dona Canô me jogaria no lixo, nem minha mãe não é minha mãe! Gosto dessa brincadeira porque certamente inspiro e expiro a Tropicália porque desde menino ouço-a em casa. Minha mãe, e não dona Canô, ouve-a sempre e sempre e até hoje e, como fui criado por ela, uma tropicalista de carteirinha, também herdei a minha carteirinha do clube.

Minha mãe fala dos festivais, das gritarias, das reações, das rixas e eu pude ver em filmes e em documentários, ler em artigos, revistas e livros tudo isso. E desde os meus 14 anos, sempre que Caetano abre a boca, corro pra ouvi-lo porque, afinal, foi ele quem organizou o movimento, como ele próprio afirma nos primeiros versos de seu hino Tropicalista, Tropicália de 1967:



Eu organizo o movimento, eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central do país


Essas gritarias também se podem ouvir na faixa que sai nas antologias tropicalistas com o título de Ambiente de Festival, na qual se ouve um Caetano pré-exilado aos berros de indignação e, na mesma faixa, Proibido Proibir, um Caetano não menos indignado e esbravejando revoltado contra impropérios.

Certa vez, lendo e estudando, achei uma possível definição para a Tropicália, de acordo com a professora Hilda Lontra [1]: A Tropicália é um movimento de vanguarda, resultante de e cronologicamente posterior a outros movimentos de vanguarda literários. Tais manifestações de vanguarda, de acordo com a professora, todas elas anteriores ao movimento de Caetano, tinham a preocupação com a linguagem e com a exteriorização da individualidade, numa perspectiva de nacionalismo capaz de fazer frente ao desafio que os veículos de comunicação de massa lançavam à literatura. Entendendo a perspectiva de nacionalismo como algo que se perdeu da intenção primeira dos modernistas de 22, posto que a poesia moderna tentou, inicialmente, contribuir para combater, de dentro, o academicismo que vigorava em nossas letras, propõe um abrasileiramento da literatura contra o ideário e o estilo europeus que iluminavam a maioria dos textos desde o Realismo.

A partir de 1945, as pressões históricas tanto internacionais como nacionais, numa conjuntura cultural propícia, favoreceram que novas manifestações poéticas se frutificassem para tentar registrar as angústias nacionais, advindas das bases da política brasileira. Por isso, na década de 1950, se vê o Brasil ideologicamente conturbado entre a direita e a esquerda, que se faz arauto dos interesses populares, entendidos como irrelevantes pela força central política vigente (de direita), deixando, assim o campo propício para as vanguardas surgirem e soltarem o verbo, pois todas elas prezavam pelos questionamentos da linguagem, pela busca de formas de expressão inovadoras e originais e pela ideologia nacionalista.



Assim, ainda de acordo com a professora Hilda Lontra, as vanguardas dos anos 50, por essa ótica, podem ser entendidas como uma forma de se recuperarem as ideias modernistas de 22, que, em princípio, também foram entendidas como ideias de nacionalismo, de liberdade e de inovação. 



Então, a Tropicália é movimento de vanguarda, de fundamentação ideológico-literária, divulgado musicalmente por Gilberto Gil e Caetano Veloso, em meios de comunicação de massa, entendido, em sua origem e formação, como o lixo musical, iniciado em meados de 1967 e perdurando até fins de 1973, quando da publicação do LP Araçá Azul [2]. Mas, como ele próprio, Caetano, afirma em seu Verdade Tropical: "A aventura que se iniciou para mim com o tropicalismo não acabou nunca." (Cia das Letras: 1997).   



De qualquer maneira, Caetano justifica seu nacionalismo um tanto neutro: "O nacionalismo dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano, pouco ou nada tinha a ver com gostar das coisas do Brasil. Qualquer interesse em refinar-se a sensibilidade -fosse o aprofundamento do contato com nossas formas tradicionais, fosse na atitude vanguardista experimental- era considerado um desvio perigoso e irresponsável." [3]

Eu, porém, autor deste texto, organizo o movimento tropicalista (e aqui não estou fazendo ciência), por um ponto de vista totalmente subjetivo e portanto pessoal. Li, estudei e ouvi muito, mas nunca o bastante, para me aventurar em algo, digamos, didático como o que faço agora. Para mim, a Tropicália divide-se em dois momentos:

A. No deboche e na irreverência (ou para usar a palavra da moda da época, o desbunde) e
B. Na crítica.

O deboche e a irreverência se notam na postura deles, bastando observar tão somente o figurino de palco e mesmo o que usavam dia a dia, cotidianamente como, por exemplo:


Capa do LP "Mutantes", de 1969


Caetano no final dos anos 60. Foto Cristiano Mascaro
Ou também nas letras de suas próprias canções e ou nas brincadeiras feitas com os arranjos de músicas tradicionais anteriores ao Movimento. Vejamos as canções Batmacumba (Caetano e Gil), esta de inspiração quiçá concretista, e a futurística 2001 (Tom Zé e Rita Lee). E também as canções Chão de Estrelas [aqui a original] [aqui com Os Mutantes] (Orestes Barbosa e Sílvio Caldas) e Coração Materno [aqui a original] [aqui com Caetano] (Vicente Celestino), essas ridicularizadas sim, mas com pompa e circunstância irônica, mas que vão muito além do ridículo ou da paródia, já que se propõem também à atualização da cultura popular de massa. 

Já a crítica, que também se viu praticamente recheada de deboche e irreverência, é o meu lugar favorito. Aqui, ela se mostra e se faz em duas direções:

A. Em direção contrária à Bossa Nova (veja) e
B. Em direção contrária à Ditadura Militar (1964-1985). 


Quando Caetano Veloso compôs Paisagem Útil, uma marcha-rancho, paródica e metalinguística, o fez num processo de autoafirmação tropicalista, já que Tom Jobim compusera, tempos antes, a Inútil Paisagem. Porém, cumpre observar enfaticamente que, apesar de tais reações, os músicos não são entre si inimigos, não criaram uma arena de guerra de gladiadores, não se hostilizaram nem se ofenderam. O que Caetano Veloso e sua turma tropicalista faziam era uma forma de MUSICALMENTE criarem um novo viés de ver e entender as coisas do Brasil. Negar a Bossa Nova (sim, negar!) não era desgostar dela. Não era diminui-la, até porque seria uma guerra perdida diminuir a Bossa Nova, um estilo musical tão complexo e de qualidade indiscutível. Negar a Bossa Nova era tão somente mostrar um novo caminho, uma nova música, diferente e tão ou mais a cara do Brasil, num processo de colagem -antropofágica?- de elementos nacionais (e ou estrangeiros), mas sobretudo identificatórios e peculiares ao gosto tupiniquim.

É por isso que temos a seguinte declaração de Caetano, quando de suas primeiras explicações sobre o Movimento: "Eu tinha consciência de que estávamos sendo mais fiéis à bossa fazendo algo que lhe era oposto." [3] Sim, como dito, num autêntico processo de autoafirmação!

No mesmo hino tropicalista citado acima, de 1967, Tropicália, Caetano faz da crítica, da irreverência e do deboche, de acordo com ele mesmo em seu Verdade Tropical (Cia das Letras: 1997), sua verve mais afiada contra a Bossa Nova. Ele, quando sugere, ironicamente: Viva a Bossa, Viva a Palhoça, está dizendo que a Bossa é algo sem valor, algo comparado à palhoça. Atacar a Bossa Nova, que era a trilha sonora dos anos 60 e estes, o tempo também da ditadura, é atacar silogisticamente o outro, já que Bossa Nova inspira os anos 60, e os anos 60 inspiram a Bossa Nova.  

Sim, pode ser uma generalização, mas que neste caso coincidiu bem. E não deixa de coincidir de maneira deveras irônica: Se a trilha sonora da Ditadura era de tranquilidade é como se os tempos também fossem tranquilos (era no que se queria acreditar). Os tropicalistas acordes dissonantes, barulhentos até, vêm mostrar que não eram tempos tranquilos. Vêm mostrar que aquilo que vigorava precisava ser descortinado e, mesmo que por meio de barulho, muito barulho, a verdade precisava ser dita. Ou, mesmo que por meio de sutis ironias e ambiguidades poéticas.

Assim, o ataque à sonoridade tranquila e amena da Bossa Nova se dá quando se ouvem os já referidos acordes dissonantes anunciados metalinguisticamente na letra da canção e quando feitos de fato e na prática.



Mas seu coração balança um samba de tamborim
         Emite acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes [...]


Os bossanovistas subiam ao palco e se apresentavam do alto de suas golas-rolê com gel no cabelo, de terno e gravata. Engomadinhos. Então, ser dissonante a isso é ser tropicalista: subir ao palco com roupa pouco convencional e até mesmo plantando bananeira, quase um bunda-lêlê, mandando tudo o mais “para o inferno”:


             Não disse nada do modelo do meu terno 
             E que tudo mais vá pro inferno, meu bem 
             E que tudo mais vá pro inferno, meu bem

Caetano de "Bunda Lê-lê", no festival de 1968


Edu Lobo (de gola-rolê) na defesa de "Ponteio" no Festival da Canção de 1967
As críticas à Ditadura vão se acentuando com o tempo e lhes valerão, a Caetano e a Gil, o exílio em Londres. São mais fortes em Alegria Alegria [aqui], cujo título é explicado pelo próprio Caetano em seu Verdade Tropical, já citado. São mais fortes em seus discursos e em sua postura política e convictamente elaborados a partir da ideia defendida e apregoada de liberdade contra a censura e contra as forças reacionárias de extrema direita, reforçadas a partir de 1968 com o AI n° 5.


Mas, sendo um movimento de ideologia literária, é na Antropofagia de Oswald de Andrade em que Caetano e Gil vão se inspirar, já também inspirados na arte vanguardista de Helio Oiticica.

Cartaz criado por Hélio Oiticica a partir da foto do bandido Cara de Cavalo morto pela polícia
 
Instalação de Hélio Oiticica em Inhotim (MG) - Acervo pessoal, 2012


E, também, na obra teatral oswaldiana, O Rei da Vela (1937), sua inspiração se concretiza - aqui sem se saber qual delas é a primeira inspiração (isso importa?!).
 
Capa do LP "Estrangeiro", 1991, que reutiliza o cenário original da 1a. apresentação de "O Rei da Vela", 1967

O Rei da Vela era, e ainda o é, como obra de arte atual e contínua, uma crítica feroz e aguçada, porém simbólica, alegórica até, à sociedade capitalista e de consumo. No contexto oswaldiano, o enredo se desenvolve pela crise da bolsa de valores de Nova Iorque, em 1929, que arruína também a burguesia pseudo-aristocrática tupiniquim brasileira.


Ora, não é difícil perceber as aproximações e semelhanças: O contexto sociopolítico de 1937 é uma ditadura, a de Vargas, regida pela presença do capital estrangeiro. Já o contexto sociopolítico de 1967 é também o de uma ditadura, a militar, patrocinada pelo capital norte-americano. Tanto em 37 como em 67 a presença de um estrangeiro, forasteiro incomodou. Tanto em 37 como em 67 as restrições à expressão, à liberdade, etc, levaram Caetano (a partir de 67) a criar, antropofagicamente, ou seja, devorando, direto da fonte, em Oswald de Andrade, o líder da Antropofagia (1928) cultural brasileira, os elementos necessários, não só para atualizar a peça, como também para embasar e ou justificar literariamente seu projeto musical-artístico-vanguardista-poético-social-cultural brasileiro.

           
O Abaporu (1928), Tarsila do Amaral. Tela símbolo do Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, também de 1928
As aproximações possíveis entre esses momentos histórico-políticos nos possibilitam interpretar suas relações de significado metalinguístico, atribuindo ao processo criativo algo de contínuo e lógico, num exercício de referências e reverências claras ao já posto. A atualização de ícones e símbolos (culturais, musicais, poéticos, artísticos, etc) só reafirmam sua importância e nunca os tiram do jogo e de seu lugar adquirido, apenas reforçam sua permanência, seu sentido, seu significado, sua relevância e sua eternidade para seu povo e para sua cultura.

Veja Também:
Um site (muito legal) dedicado à Tropicália aqui.
A discografia básica tropicalista aqui.
A filmografia tropicalista ou sobre a Tropicália aqui.
Site oficial de Caetano Veloso e sua discografia completa aqui.
Site oficial de Gilberto Gil e sua discografia completa aqui.
Sobre a banda Os Mutantes aqui.
Os filmes: 
Uma Noite em 67 (Direção de Renato Terra e Ricardo Calil, 2010) aqui.
Coração Vagabundo (Direção de Fernando Grostein Andrade, 2009) trailler.
O Cinema Falado (Direção de Caetano Veloso, 1986).
Saravah (Direção de Pierre Barouh, [1969] 2005) aqui
Palavra (En)Cantada (Direção de Helena Solberg, 2009) aqui.
Vinícius (Direção de Miguel Faria Junior, 2006) trailler.
Ouça também:
O álbum Os Mutantes (1968)
O álbum  Estrangeiro (1991), de Caetano Veloso.

 Fernando Medeiros é professor de Literatura.
Prestou-nos gentilmente consultoria histórica a professora Danielle Araújo.
            


Referências e Bibliografia:

[1] Em CYNTRÃO, S. Helena. A Explosão Tropicalista e Seus Estilhaços. UnB, 1999.

[2] Araçá Azul, tendo sido publicado em 1973, encerra, controversamente, o movimento. Embora muitos críticos atribuam ao LP Caetano Veloso, o de "Irene", de 1969, o fim; o próprio Caetano, em Verdade Tropical, 1997:485, fala de um possível fim de sua Tropicália quando chega aos resultados do experimentalismo musical que obteve em Araçá Azul. E ele próprio o confirma ao dizer que, por tal experimentalismo, esse é seu disco de menos vendagem em toda a sua produção. 

[3] Biografias Contigo! Caetano Veloso. Edição 4, 2004.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Cia das Letras, 1997.